trabalho:
carta de pedro rena para luiza dulci

Belo Horizonte, 1º de julho de 2020.

Querida Lu,

como estão as coisas por aí nos Estados Unidos?

Primeiramente, é uma loucura trocarmos essa correspondência entre esses dois países atingidos com maior gravidade pela crise do vírus e pelo desastre político. Mas por isso mesmo queria te escrever, escutar quais são as suas percepções do seu ponto de vista: da América do Norte e da área da economia política. Queria saber das suas pesquisas e o que você tem lido! Queria compartilhar algumas questões que tenho pensado ultimamente, me lembrando do debate que tivemos na mostra 68 e depois sobre o filme ArábiaRetomo aqui um trecho do debate, em que Luiz Dulci nos diz:

Tem uma questão clássica que pra mim sempre foi muito importante — a contracultura dava muita importância à essa questão, com outro vocabulário mas dava — que é a questão do sentido do trabalho pra pessoa, que é um conceito que se usava de alienação do trabalho — a perda do sentido do trabalho pra quem o realiza — ou, a possibilidade de que o trabalho seja também um espaço de expressão, e não só de execução de tarefas. Pro movimento sindical da nossa época em 1979, porque eu fui sindicalista nessa época, a questão não estava pautada dessa maneira. A questões das condições do trabalho não era o principal, era estabilidade no emprego, salário, direito de organização por local de trabalho, não era tanto o sentido do trabalho em si mesmo… No Abc da Greve havia uma relação com a máquina que não era uma relação de expressão.

Queria ouvir o que você tem pensado sobre os rumos que as condições do trabalho têm tomado nessa coronavida. Questões que vem se encaminhando nos últimos anos, e agora se intensificam ainda mais com a pandemia. Naquele tempo, há exatos dois anos, discutíamos sobre o sentido do trabalho no contemporâneo, sentido que vem se perdendo aos poucos, numa desidentificação completa entre os trabalhadores e seus empregos. Empregos precários, frágeis, sem garantia, sem laços sociais. Penso que em Arábia já estava colocada de alguma maneira essa questão da decadência do trabalho industrial, em direção a um mundo pós-industrial no Brasil. Compartilho com você esse trecho do livro Depois do futuro, do Franco “Bifo” Berardi, que estava lendo por aqui, falando sobre a questão do trabalho contemporâneo: 

Pensemos no que era o trabalho na época industrial. O trabalhador era uma pessoa jurídica, um indivíduo, um corpo que emprestava o seu tempo (oito, nove, dez horas por dia) ao capital para que este pudesse sugar o máximo de valor possível. Mas, naquele âmbito, a pessoa era portadora de direitos políticos e sindicais, e o corpo físico era movido por pulsões, instintos, desejos, fraquezas. Em uma luta-negociação ininterrupta, o capital e o trabalho entravam em conflito, faziam acordo e estabeleciam regras. Reconheciam-se direitos, estabeleciam-se modalidades de relação jurídica e sindical. O corpo físico do trabalhador tinha direito ao descanso, à assistência, à cura, à aposentadoria. Quando o processo de produção se transforma em rede digital, quando o ato produtivo se torna distribuição de átomos de infotrabalho certificados conforme um princípio de modulação e de reprogramação, a essa altura não há mais nenhuma necessidade de pessoa jurídica do trabalhador nem de seu corpo físico. Na rede global, não há mais pessoas que prestam tempo-trabalho, mas um mosaico infinito de fragmentos reprogramáveis e celulares.

O caminho da “barbárie tecnológica”, como Agamben vem chamado, do totalitarismo digital. A realidade da perda do contato humano com o trabalho, e também com as outras pessoas, com o mundo. O “capitalismo maquínico”, que substitui humanos por máquinas, que não apenas tomam os sujeitos como peças de suas engrenagens e de sua maquinaria (como em Arábia), mas um sistema em que as pessoas internalizam as diversas pequenas máquinas da informática e da computação (os smartphones que se tornam nossas próteses). Um regime de trabalho celularizado (literalmente), em que o trabalho e a exploração está em toda parte, em todo o tempo, pulverizado. Mundo em que o big data controla e monitora nossas ações e nosso desejo. Um capitalismo 24/7, ao qual servimos dia e noite, conectados em nossas redes (lembro da frase que Ventura repete nos filmes do Pedro Costa: “Aqui o trabalho nunca para”). A uberização do trabalho… Enfim, em meio a tantas tragédias e faltas de perspectivas de futuro, queria saber se você vislumbra possibilidades e formas de resistência dentro deste sistema, desta nova realidade que estamos enfrentando. 

Um beijo grande!

Pedro.

Imagem da capa

DUMANS, João; UCHOA, Affonso. Frame do filme Arábia. 2017.