a noite nunca é plena:
carta de marcelo castro para eleonora fabião
Belo Horizonte, 8 de julho de 2020.
Eleonora querida,
salve salve!
Vim te escrever esta carta e encontrei esse poema do poeta polonês Czesław Miłosz
em um antigo rascunho não enviado para você.
Não sei por que não te enviei, mas consigo entender o que me fez
escrever seu nome no campo — destinatário — e anexar essa imagem no corpo do e-mail.
É que desde a primeira vez que te ouvi
(desde aquela caminhada de ponta a ponta na Avenida Paulista) — eu soube que você
nãoédaqui
como se tivesse sido enviada
para absorver
o máximo das cores, sons, cheiros, sabores
provar de tudo e converter o vivido
num registro mágico e levá-lo para lá, de onde
partiu.
Minha amiga-luz — meu amarelo — meu descanso corajoso,
desde o começo dessa tragédia que nos paralisou a todos
tenho pensado em te escrever.
(sempre evoco você nos momentos de intensa alegria ou de dor)
Preciso ouvir suas palavras.
Você que me disse logo após o golpe de 2016 (o golpe que abriu a porta para a desgraça)
Que a partir daquele momento teríamos que trabalhar em dobro,
como artistas teríamos que criar em dobro, encher o mundo de sensibilidade, produzir outros mundos incansavelmente.
E assim fizemos.
E eu te pergunto, e agora?
mas já intuo a sua resposta porque sei que você está ativa
abrindo janelas
promovendo encontros
desencapando fios
agindo para que doações cheguem ao hospital da UFRJ.
Imagino que agora tenhamos que trabalhar o triplo, não é mesmo?
Como fazer para não perder o sensível, o afeto, a ternura?
“O contrabaixista Ron Carter dizia que sua função num quinteto de jazz (e ele tocava no quinteto de Miles Davis) era tocar sempre a nota que impedisse os outros músicos de tocar a nota que eles imaginavam que iam tocar, obrigando-os sempre a encontrar uma nota inesperada. Penso nessa frase, obsessivamente, mesmo sem ser músico, e acho que é porque no fundo a vida, tal como a vivo, é o meu Ron Carter, sempre fazendo soar a nota que me impede de tocar a nota que eu achava que ia tocar, e me obrigando a encontrar outra, à queima-roupa, numa fração de segundo.”
(Carlito Azevedo no Livro das postagens)
Tô aqui tentando encontrar a nota
à queima-roupa
e se o meu instrumento foi destruído?
Na minha última carta, desejoso de esperança
inspirado pelo seu projeto
JANELAS ABERTAS
anexei o seguinte poema do poeta francês Paul Éluard
traduzido pelo Guilherme Gontijo Flores
e agora, para terminar, te envio
outro tesouro do Paul Éluard
traduzido a quatro mãos pelo Drummond e o Manuel Bandeira
mas antes eu tenho que te contar uma história sobre ele.
Escrito em 1942, com o título “Une Seule Pensée”,
esse texto foi transportado clandestinamente da França, ocupada pelos nazistas, para a Inglaterra.
Em 1943, traduzido para vários idiomas, o poema foi distribuído como um panfleto,
lançado por aviões aliados nos céus da Europa conflagrada.
O responsável por contrabandear essa preciosidade da França ocupada para a Inglaterra
foi um artista brasileiro, o pintor pernambucano Cícero Dias.
— agora imagine uma chuva com estas palavras caindo sobre o Brasil,
atualmente ocupado pelo nazi-fascismo —
Um Único Pensamento
Nos meus cadernos de escola
Nesta carteira nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome
Em toda página lida
Em toda página branca
Pedra sangue papel cinza
Escrevo teu nome
Nas imagens redouradas
Na armadura dos guerreiros
E na coroa dos reis
Escrevo teu nome
Nas jungles e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No céu da minha infância
Escrevo teu nome
Nas maravilhas das noites
No pão branco da alvorada
Nas estações enlaçadas
Escrevo teu nome
Nos meus farrapos de azul
No tanque sol que mofou
No lago lua vivendo
Escrevo teu nome
Nas campinas do horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome
Em cada sopro de aurora
Na água do mar nos navios
Na serrania demente
Escrevo teu nome
Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva insípida e espessa
Escrevo teu nome
Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na física verdade
Escrevo teu nome
Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças que regurgitam
Escrevo teu nome
Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome
No fruto partido em dois
de meu espelho e meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo teu nome
Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas fitas
Em sua pata canhestra
Escrevo teu nome
No trampolim desta porta
Nos objetos familiares
Na língua do fogo puro
Escrevo teu nome
Em toda carne possuída
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome
Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome
Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome
Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte
Escrevo teu nome
Na saúde recobrada
No perigo dissipado
Na esperança sem memórias
Escrevo teu nome
E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar
Liberdade
…
é isso, Eleo,
me mande notícias do seu front.
com amor,
Marcelo
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Imagem da capa
CASTRO, Marcelo. Foto sem título. 2020.
Marcelo Castro é um artista da cena. Desde 2016 pesquisa poesia brasileira contemporânea e seus possíveis diálogos com a performance. No teatro, desenvolve seu trabalho em parceria com diversos artistas e companhias teatrais brasileiras. Dentre suas criações, dirigiu com Pablo Lobato e Vinícius de Souza, “Éramos em Bando” (filme-ensaio do Grupo Galpão); Danação (solo de Eduardo Moreira); “Quer ver escuta” (Grupo Galpão – em processo); atua nas peças “Três Tigres Tristes” (Plataforma Planos Incríveis) e “Prólogo Canino-Operístico (solo a partir do poema de Carlito Azevedo). Foi fundador do Grupo Espanca! onde permaneceu por 13 anos, atuando nos espetáculos “Por Elise”; “Amores Surdos”; “Congresso Internacional do Medo”; “Marcha Para Zenturo; “O Líquido Tátil” e dirigindo “Real” e “Dente de Leão. Licenciado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Eleonora Fabião é uma artista que realiza ações. Desde 2008 performa nas ruas. Se interessa por poéticas e éticas do estranho, do encontro e do precário. Trabalha com matérias diversas: humanas e não-humanas, visíveis e invisíveis, leves e pesadas, estético-políticas. É professora da Pós-Graduação em Artes da Cena (coordenadora da linha de pesquisa Experimentações da Cena: Formação Artística) e do Curso de Direção Teatral, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. É Doutora em Estudos da Performance (New York University), Mestre em Estudos da Performance (New York University) e Mestre em História Social da Cultura (PUC-RJ).