gôndolas, redes de balanço:
carta de roberto medeiros para cláudio oliveira
Belo Horizonte, 9 de julho de 2020.
Caro Cláudio,
Um amigo, desses com quem se expõe à clara luz e sem rodeios a condivisão da existência, e, neste caso, com quem divido uma morada, me convidou para um projeto de envio de cartas, para uma troca possível nestes tempos pandêmicos quando, não ironicamente, alguns contágios parecem mais raros. Me entusiasmei com a ideia e, depois de algum tempo, pensei em lhe escrever.
Não nos conhecemos, mas fui tomado por um escrito seu numa certa madrugada de 2017. Você havia comentado, quase como um diário íntimo, sobre o seu encontro com Giorgio Agamben em Veneza no ano de 2007. Na época desta sua publicação Veneza, Agamben, eu era um estudante de mestrado em filosofia em Fortaleza, a poucos meses de apresentar uma dissertação fazendo uma crítica à subjetividade neoliberal, a partir de Foucault, e há um ano tendo iniciado minha formação psicanalítica numa escola lacaniana. A cabeça estava um turbilhão e eu estava buscando me aprofundar cada vez mais da obra de Agamben. Os ensaios dele (lembro de me deparar com A comunidade que vempouco antes desse seu texto) funcionavam como um respiro e uma pausa, tão importante para o pensamento. Foi muito tocante para mim ler o seu relato. Recordo um amálgama de entusiasmo e um certo deslumbramento, aquela sensação um tanto ingênua de surpresa com o fato de ser possível encontrar Agamben assim, em sua casa; que ele tenha cozinhado para você, que tenham caminhado juntos por Veneza à noite. Talvez tenha sido um momento também de me dar conta que compartilhamos de um mesmo tempo nesta terra – claro, sempre soube que Agamben estava ali vivíssimo, mas não é exatamente disso que se trata. Nós dividimos também uma época com seres tão desprezíveis, eu sei, mas me encho de alegria ao perceber esses vagalumes de nosso tempo, alguns bem próximos, outros mais distantes.
Lembro que meu exemplar d’O Uso dos Corpos chegou pelos correios semanas depois, ainda no mês de abril daquele ano, e a minha primeira leitura, até apressada demais, se deu embalada por pensamentos inebriantes, fantasiosos, onde eu imaginava Veneza; me via perambulando pelos becos, encontrando Agamben, conversando empolgado, vibrando, mexido pela leitura do livro, mas ainda como alguém que demandava exemplos daquilo que ele descreve ali como uma forma-de-vida.
Eu já tinha estado em Veneza, por um dia, em 2005. Fiz uma viagem a Europa pela primeira vez aos catorze anos, com meu pai e minha irmã. Eu sempre li essa viagem como uma tentativa do meu pai de nos “distrair”, ou nos alegrar de alguma forma, um ano após o falecimento da nossa mãe, que se submeteu a uma cirurgia e não resistiu. Lembro que ela sempre teve o sonho de conhecer a Itália. Tenho recordações dela e de meu pai, saindo algumas noites para um curso de italiano, e de sentarem num quarto de casa próximos ao computador para escutar um cd-rom.
Depois de ler sobre a sua visita, fiquei elétrico por alguns dias, envolto na possibilidade de fazer o mesmo: ir a Veneza, encontrar Agamben… (como se o “mesmo” fosse possível! Risos). Por várias vezes eu retornava ao seu escrito e me deliciava novamente com suas palavras, quase como se também pudesse saborear a lasanha de peixe e o risoto que você descreve. E então, eis que, um pouco mais de dois anos depois, eu consegui concretizar a viagem. Iria novamente à Itália, quase como uma primeira vez, e dessa vez me demoraria mais. Escolhi apenas Veneza e Roma. Acho que a psicanálise me ajudou, dentre outras coisas, a abrir mão de bom grado daquilo que eu supostamente poderia experimentar “mais”. Penso ter sido melhor passar muitas noites em Veneza e em Roma do que três ou quatro em várias outras cidades, até porque eu espero voltar. Eu gosto da – eu ia dizer ilusão – da sensação de me sentir familiar, de aprender o percurso do hotel a um novo restaurante preferido, de reparar o mesmo funcionário abrindo toda manhã cedo a mesma loja de pães e doces próxima ao hotel em Cannaregio, de entender razoavelmente a malha do transporte público (no caso, dos vaporettos). Foram oito noites incríveis na sereníssima.
Eu não sei se você se deu conta, mas estava ali no seu relato, e no seu outro texto publicado na Folha, quase todo o mapa do endereço de Agamben. Foi só ligar os pontos e de repente eu tinha o nome do bairro, a estação de vaporetto mais próxima de sua casa, o número, além do fato de que sua residência se referia ao segundo e terceiro andar do Palazzo. Ainda que estivesse tudo de modo quase óbvio, eu me senti um certo Sherlock Holmes, me permita dizer.
E eis que eu chego em Veneza, na noite de 2 de setembro de 2019. Entenda, Cláudio, eu sou de Fortaleza. Aprendi a me afeiçoar ao mar. Lá não temos gôndola, temos jangada. Mas chegar em Veneza após alguns meses morando em Belo Horizonte foi de um júbilo deveras oceânico. Minhas narinas e meu pulmões faziam Um com aquele cheiro salgado de maresia. Curiosa essa sensação de sentir-se “em casa” num lugar tão novo e que de alguma forma se mostrava próximo mesmo catorze anos depois.
Mas alguma coisa se passou ali, não sei bem exatamente o quê, e eu não procurei Agamben. Podia fazê-lo, mas não o fiz. Pensei em escrever-lhe uma carta e deixá-la no correio no primeiro dia para, quem sabe, encontrá-lo, mas, sinceramente, não sabia o que escrever. Os dias se passaram e eu fui me distraindo com a cidade, visitando palácios, a bienal de arte, uns dias no festival de cinema, comendo muitíssimo bem, me perdendo. Não andei de gôndola, mas lembro de olhar por um longo período para uma que estava vazia, flutuando sem preocupações, e lembrei-me de quando era embalado numa rede, na infância na casa dos pais. Durante à noite, eu estava procurando pelos espectros de Veneza. O retrato que você fez da cidade nestas horas tardias, quando a maior parte dos turistas sumiam, me despertara muita curiosidade muito antes de eu começar a planejar a viagem. E, de fato, talvez as lembranças mais cintilantes sejam as dos horários já próximos da madrugada em que eu caminhava sem rumo no breu e no silêncio daquelas noites frescas de fim de verão, após um jantar. Eu estava sozinho e talvez assim os espectros pudessem me encontrar mais facilmente. Agamben só me acompanhava nos livros em minha mochila, e eu fazia questão de levar um ou outro comigo nos meus passeios.
Quem sabe agora, já distanciado quase um ano da viagem, eu possa ver que visitar Veneza não se tratava só de tentar visitar Agamben, mas me visitar visitando Veneza. Eu também pude lembrar-me muito da minha mãe, tentar tocar com certa serenidade algo de um não-vivido, e (me) perceber, olhos em água, que se eu estava ali, era por causa dela. Talvez só Veneza me permitisse visitar a mim mesmo assim.
Eu tinha uma outra expectativa para o tempo desta viagem que também não se cumpriu, mas que meses depois se resolveu: você tinha uma motivação para sua ida a Veneza naquela época, um manuscrito de Agamben sobre Lacan. Aquilo me encheu de curiosidade. Passei o ano de 2017 procurando informações sobre esse texto e nada, até que esqueci. Só soube muito tempo depois que foi lançado, quando me mudei para Belo Horizonte no início de 2019, e aqui não encontrava nas livrarias. Também no site da editora ele estava esgotado. Fui a Veneza sem ter lido essa conferência. Eu tinha, e ainda tenho, muitas questões sobre quais são os enlaçamentos possíveis entre Agamben e Lacan, como se às vezes vislumbrasse lampejos de aproximações conceituais, talvez sem tanto rigor da minha parte, como por exemplo a aproximação da identificação ao sintoma, enquanto efeito da marca de lalíngua, e a ideia de uma vida inseparável da sua forma, uma forma-de-vida. Toda a questão da linguagem e da antropogênese também parece trazer muito pano pra manga para pensar, sejam aproximações ou distanciamentos. Iria gostar de ouvir como essas questões soam para você.
Só em novembro do ano passado, numa ida rápida a São Paulo, eu resolvi procurar o manuscrito e o encontrei, finalmente, nesta edição em português e francês. Esse texto me é muito caro. Queria agradecer a você por ter ido buscá-lo, e por ter feito a tradução. E saber da sua história para que isso tenha sido possível só faz com que o escrito adquira uma aura especial para mim, mesmo minha edição sendo o exemplar nº 263. Ler o texto da conferência me fez ver como as formulações do Agamben acabam lançando uma iluminação indireta sobre alguns escritos de Lacan e assim me fazem captar certos dizeres antes não acessados. Algo do encontro teórico desses dois consoa comigo.
Lembro, neste manuscrito, da passagem sobre a tabuleta coberta de uma fina cera, para falar sobre a potência, onde ele comenta que esta tabuleta é gravada por sua própria receptividade, por sua própria passividade. Na hora eu pensei que, numa psicanálise, nos deparamos também com um sujeito que vai sendo marcado pelos significantes que vem de “fora”, do Outro, mas também se deixa marcar de forma tal ou qual, e que uma análise enquanto experimentum talvez possa dizer sobre deixar cair a força de uma marcação que parecia tão necessária, e causadora de sofrimento, para perceber não só que se foi e se deixou ser marcado por este ou aquele traço, mas também dar-se conta da contingência da marca mesma, não sem a experiência de “gosto”, de gozo, que aí se envolveu, e a partir daí saber fazer com isto que não é da ordem de uma qualidade ou predicado, mas de um modo de ser ao estar em contato com tais predicados. Chegar até essa percepção da contingência da inscrição da linguagem (e do efeito singular de gozo disto para cada um) me parece capaz de abrir as portas para uma experiência da língua para um sujeito. São só alguns pensamentos e acho que já estou me alongando demais.
Escrever para você me fez sentir saudades do brilho nos olhos que experenciei na época da leitura de seu relato, ainda com um certo frescor de grandes expectativas. No final das contas, a experiência real italiana foi bem melhor do que qualquer imaginário meu. Não encontrei Agamben, mas estou em paz com isso.
E você, do que sente saudades, Cláudio? Devo dizer também que, nesta quarentena, eu sinto saudades de um restaurante próximo de casa, onde algumas vezes almoçava nos dias em que tinha mais tempo, quando começava a escutar os analisandos mais tarde, e podia me deitar na rede que o estabelecimento armava ao lado das mesas, depois de um excelente prato feito mineiro, e ali ficava, por vezes cochilava, num balanço que me presentificava o mar que aqui me falta.
Lembro de ter visto em algum lugar Agamben comentar, a partir da ideia de inoperosidade, que nos falta algo como uma filosofia da cama. Talvez aqui, nesta terra brasilis, pudéssemos ouvir mais aqueles povos capazes de nos falar de uma filosofia da rede. De balanço.
Que esta carta chegue como uma boa onda,
Abraços,
Roberto.
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Imagem da capa
JOSINO, Roberto. Sem título. 2019
Roberto Medeiros é psicanalista, residente em Belo Horizonte, com formação clínica nos Fóruns do Campo Lacaniano de Fortaleza e Belo Horizonte. Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Prefere se entender como um estudioso e curioso da obra de Giorgio Agamben e outros filósofos, como Michel Foucault, e não tanto um pesquisador. Gosta de fotografar quando dá na telha.
Cláudio Oliveira é graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense, onde leciona desde 1994, e Membro Colaborador Externo do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) da UFRJ, desde 2019. É membro do Conselho Editorial da Coleção Filô, da Editora Autêntica, onde dirige a série FilôAgamben. Também pela editora Autêntica, publicou traduções de Platão, Giorgio Agamben e Barbara Cassin.