bonjour monsieur:
carta de gabriela luíza para randolpho lamonier

Belo Horizonte, dia 1892471 da quarentena, 2020.

      Oi, meu amor, 

Outro dia eu disse para Helena que quando a gente conversa por áudio eu me sinto a Lygia Clark conversando com o Oiticica!  kkkcry

Você já leu essas correspondências deles, né? Ela é escorpiana também. Completamente doida. Eu me identifico para além dos escritos. E você também me parece o doidão da cosmococa com seus retalhos e cores. Você nunca mais me mandou áudio de 18 minutos. Nenhum de nós dois apareceu no dia que marcamos um Skype. Veja que bela oportunidade temos agora. 

Inclusive, por aqui, a dinâmica tem sido abrir espaço para novas oportunidades: ela faz o empreendimento dela. Você consegue acompanhar os memes brasileiros daí? Eu os consumo 36 horas por dia. Incrível nossa capacidade de rir no meio da desgraça. Mas, na verdade, não tá tendo muito graça, não. Tá batendo a água na bunda e tá dando tanto medo — m-e-d-o — medo de verdade. 

Mas estou focadíssima em abrir espaço. Entre o pescoço e a orelha, entre o cinema e o teatro, entre cada vértebra, nas narinas… Nossa, quanto mais entra ar — aaaaaa — você não acredita… E eis que inventei um nome para o filme novo que tô fazendo e fiquei bastante feliz. Aí descobri que, na verdade, é um conceito do Foucault! hahahaha Eu amo ser ignorante porque percebo que sou muito inteligente kkkkk.

Ok! Chama BIOpolítica. Provavelmente, eu já tinha ouvido falar. Mas escolhi pensando em fazer uma resposta literal à necropolítica e à exacerbada pulsão de morte que ecoa nesse país. Agora vou ter que mudar o nome porque tenho medo de fazer o filme e algum acadêmico vir me perguntar alguma coisa do Foucault e eu não vou saber responder.

Mas basicamente estou pesquisando a VIDA e tudo que a desperta. Talvez eu filme umas bactérias fermentando, a aula de pilates pelo zoom, minha mãe dançando pagode nas manhãs de faxina, meus sobrinhos de máscara dando tchau pela janela, minha unha crescendo, um celular desligando, a origem do mundo do Courbet. Será que eu me filmo me masturbando?

Sei lá amigo, sinceramente, estou cansando. 

Assustei muito quando você disse que não podia voltar ao Brazyl, e essa sensação permanece. 

Deu um frio na espinha, meu inconsciente soltou na hora um lááá em londres vez em quando me sentia longe daqui. De novo alegria e beleza em meio à tormenta. O Brasil é realmente bom nisso. A gente não pode decepcionar, hein. Oxalá a gente consiga criar coisas tão bonitas quanto as que o Gil fez no exílio. 

Aliás, glória às deusas temos nosso trabalho, né. Sabe que eu acho que é esse life style missionário da art que nos conecta. Tem hora que eu acho até bom ser obsessiva, porque tenho sempre uma urgência gigante em ressignificar algo. E aí bato com a cara no projeto tantas vezes até conseguir, enfim, me livrar dele. 

Isso é libertador. E isso me preenche, me alimenta, me faz passar os dias e desejar ardentemente que o amanhã exista. É um presente dos deuses parir uma obra, mas é uma desgraça a gestação. 

Affe.

Mas, na real, eu não quero criar nada mais.

Estou achando que tudo ou já tá feito ou já tá passando da hora de acabar. Tô querendo destruir na verdade. Destruir essas paradas que estão apodrecendo aí deeeeesde que o samba é samba.

Meu tempo está dividido assim: quando não estou lendo as complexas teorias de 240 caracteres do Twitter estou criando estratégias para destruir uma galeria de arte. Pode tudo a ficção, né, bee? É impressionante. Espero verdadeiramente não destruir uma galeria que tenha te contratado. 

Aliás, poucas coisas trazem tanta alegria como ver os amigos crescendo. 

Aqui perto de casa tem um salão de festa fudidaço que chama Festas Lamonier. Inclusive, é em Contagem, será que é da sua família? Sei que sempre que vejo essa placa eu penso na festa que meu coração dá quando te vê ou recebe notícias suas. 

Outro dia mesmo eu SALTEI, literalmente, da cama quando vi um stories de uma gata pa-tri-cér-ri-ma, naipe dona de loja na Oscar Freire. Tenho maior crush nela, confesso. A mulié postou TODA A SUA SÉRIE DE PROFECIAS. Aumentou meu tesão por ela? Sim ou óbvio?!  Mas, na real, o que eu pensei mesmo foi: “caraaaalho essa mulher podia comprar umas obra do Randolpho e pagar todos os boleto do meu amigo”.

Você viu isso? Foi tão chique quando o Instagram descobriu que o Brasil descobrirá que é América Latina.

Profecias, 2018, de Randolpho Lamonier.
LAMOUNIER, Randolpho. Série “Profecias”. 2019. Reprodução de “Brasil é América Latina”. 2019.

Eu morro de orgulho de você. E sou grata de estarmos juntes nessa empreitada que é ser artista marginal nesse país. 

que bom que bom que bom que bom ser contemporâneo seu, assim você não precisa atravessar paredes nem eu — canta a nossa amada Juper.

Ai, amor, tá me dando sono. Preciso aproveitar isso, porque a insônia tá bombando ultimamente. De tanto querer acordar para vida, agora tá difícil é dormir… sonhar… descansar… desligar… relaxar. 

Mas bora ver o copo vazio cheio de ar. 

Olha, se você ver qualquer coisa do Jean Vigo por aí que não ultrapasse vinte por cento do valor do auxílio emergencial (kkkk), traz para mim?! É a coisa que eu mais amo da França. Esses Jeans: o Godard, o Vigo e o Rouch.

Agora vou te falar uma coisa doída: eu acho que você devia ficar mais tempo por aí, construir seus parangolé, seus paranauê, sua carreira internacional e continuar vivo. Deixando as ryca da esquerda se estapear na porta da galeria por uma obra sua. O brasil não sabe cuidar dos seus artistas. Se salve amigo. Se salve enquanto é tempo. Mande notícia sempre que der. Eu também vou continuar vivona, te prometo. Sobrevivendo no inferno. Talvez estudando Foucault porque mole pros playba nós não vamo dá, né, bb?! 

      Te amo,

      Gabi.

P.S.: Já falei que seu site tá fudido de lindo, né? E que o vídeo da Bienal de Lyon é um farol para os nossos tempos!

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Baixe aqui o pdf da carta.

Imagem da capa

LAMOUNIER, Randolpho. Detalhe de “Brasil 2019 — partitura para fogo e metais pesados”. 2019.

Gabriela Luíza é atriz de formação, mas sempre frequentou os bastidores da cena. Como iluminadora, viveu em São Paulo criando projetos luminotécnicos para diferentes linguagens. Transitando entre o cinema, o teatro e a performance, hoje, de volta a Belo Horizonte, investiga as dinâmicas da videoarte como saída de construção narrativa.

Randolpho Lamonier é um artista visual brasileiro. Nasceu e cresceu em Contagem/MG em 1988 e se mudou para Belo Horizonte em 2012, onde se formou no curso de Artes Visuais da EBA-UFMG no ano de 2018. Entre a periferia industrial de sua cidade natal e outros grandes centros urbanos por onde tem passado, Randolpho desenvolve seu trabalho através de diversas mídias e processos entre os quais se destacam a arte têxtil, fotografia, vídeo, desenhos, textos e instalações.  Nos cruzamentos entre a vida íntima e os assuntos de ordem pública seu trabalho estabelece uma articulação entre micro e macro política e propõe, entre outras coisas, uma leitura crítica sobre o estado de normalidade da vida comum. Desde 2012 suas obras são exibidas em exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Randolpho vive entre Paris e Contagem, Berlim e Betim.