sussurro sob a lua:
carta de nina gazire para carol macedo

Belo Horizonte, 15 de julho de 2020.

          Oi Carol,

Te escrevo para contar sobre uma noite de insônia que tive no dia 9 de julho. 

Naquela madrugada, um pensamento dos mais estranhos me deteve de fechar as pestanas. A noite em claro poderia ser por conta da pandemia que nos consterna, mas talvez, num escapismo, me rendi à insônia-devaneio. Fiquei desperta, pensando que a palavra mais antiga que temos para “voz” é “vāc”, em sânscrito: वाच्. Essa premissa não é universal dentro da linguística, mas nos pertence. A voz era personificada como a deidade mãe das emoções. Voz-emoção, o que nos colocava no mundo. Você acha que ela ainda está por aqui? Com o tempo, a deusa passou a ser patrona da escrita e da memória (ela protegia os Vedas: um conjunto de textos religiosos de pelo menos uns 4000 mil anos que apontaram para inúmeros estudiosos que nós aqui, falantes do português, compartilhamos uma linhagem atávica na nossa língua compartilhada com indianos, persas e com outras línguas-mãe da maior parte da Europa, o continente que nos colonizou). 

Esses parênteses me dão a sensação de como foi o torvelinho daquela noite, chegando agora nessa carta pra você. Pressentimento de que os antigos vedas, deuses de muitos braços, híbridos de animais, portadores de tridentes… Essas imanências estejam aqui falando comigo, na minha voz, cada vez que eu teclo essa palavra. 

Foi uma insônia estranha, amiga. Porque eu perdi o sono dissertando sobre a virulência e mutabilidade de uma língua-mãe que uniu parte dos primeiros grupos humanos há pelo menos 10 mil anos. Estranhamente viemos deles e de outros, temos mil mães antes das nossas, mães das quais não temos dimensões. Isso me agarra aos dentes por ter uma mãe falecida. A parte do devaneio reside na tentativa de imaginar esses humanos falando esse proto-idioma: a resistência de vocativos, estruturas ergativas, a resiliência dos vocábulos e, sobretudo, como que a língua se ligava à guarda materna da palavra. Língua-mãe. Nunca vamos voltar a Vāc como ela era, mas seu vírus mutável está em vossa voz. 

Não posso dizer de um círculo eterno temporal, mas da beleza — dessa coisa que a Laurie Anderson falou, certa vez, de que a “a linguagem é um vírus”, procriação involuntária. Pensei em outras vias para um resgate do feminino na linguagem. A palavra “emoção” esteve sempre pejorativamente ligada ao feminino. Oremos pra Vāc, o vírus benéfico da mutação. 

Escrevendo esta carta, dada com olhos d´água, pensei no “real”, da importância da realeza de Vāc. Ela sendo a mãe das emoções que me permite falar com você através do tempo, dos nossos 20 anos de amizade, dos entendimentos e desentendimentos maternais puérperos da mente nos desprenhando entre o vai e vem da memória.

Quando nos conhecemos na PUC, em 2001, ironicamente tivemos aquela aula clássica sobre a montagem e passagem de Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço, você lembra? Do osso ao espaço sideral. Hoje eu penso naquele hominídeo engendrando Vāc, e vice-versa, dos Urais para o Curral. Acho, pessoalmente, mais válido que outras perspectivas sobre aquela montagem, tão desbastada por teóricos taxonômicos. Uma bobeira, porque perdemos a deusa de vista há tempos. Resta o sonho fílmico ou o sonho da insônia sobre ela. Dito isto, para os indianos do mundo antigo, as entidades não tinham sexo definido, mas se engendram de acordo com a manifestação que a situação pede: há searas do feminino, do masculino, dos dois ao mesmo tempo, sobremaneira, importante que a voz seja uma deusa depois de tanto tempo, afinal a língua nos pariu. 

Por que disserto sobre isso nesta carta? Lá em 2001, quando nos conhecemos, a memória maluca dos tempos de pandemia me trouxe à vista que eu estava lendo pela primeira vez um poeta indiano, e o primeiro a ser galardoado com um Nobel, Rabindranath Tagore. Eu era toda hippie, queria ser da Yoga, e tinha uma fascinação (este é o nome da música que a minha mãe foi levada ao altar pelo meu avô) por Shiva, o deus da transformação, com a lua crescente na cabeça, efígie do tempo inconstante. Ultimamente, tenho sentido muita falta de ver a lua; meu apartamento não dá vista pra nada e pra isso tenho que ir à rua. Eu tenho medo. 

O Tagore que eu recebi naquela época, um poeta místico, me prendeu quando li o verso (sobre nossa persistente específica dificuldade sociológica) que diz que “as verdades que nos salvam sempre foram anunciadas por uma minoria… e rejeitadas pela maioria”. Hoje faz mais sentido pra mim do que quando eu tinha 20 anos, quando tudo era generalizado e holístico no pior sentido/sentimento do meu campo de visão.

Rememorando nosso réveillon deste 2020 — a primeira vez que visitei Maceió foi pra te ver —, falamos muito sobre nossas dificuldades pessoais e compartilhadas e da dificuldade de falar com o mundo e com amigos. Resolvi, então, coincidentemente buscar uma lua pra nós no livro Lua Crescente (1942), que Tagore escreveu para o seu filho-criança. Ao folheá-lo, encontrei este trecho que me lembrou algo sobre alguma repetição na nossa amizade, sobre você e na distância física que nos toma agora:

Ela queria ser o vento e assoprar entre os ramos sussurrantes; 
ser a tua sombra e alongar-se com a luz do dia sobre a água; ser um pássaro. 
e pousar no teu ramo mais tenro e mais alto, 
e flutuar como aqueles patos entre as ervas daninhas e as sombras.  

Enquanto eu não ver a Lua de novo, não ver você de perto, não há como terminar esta carta. Parafraseando o Tagore de 107 anos atrás, o mundo foi retalhado em fragmentos por estreitas paredes domésticas. Como terminá-la se o tempo de Vāc, nossa mãe, continua? Como finalizá-la quando tenho certeza de que ainda hemos de nos encontrar nesse tempo com a emoção de um abraço divino e mil fofocas a serem postas na mesa de café nos alongando com a luz dia em alguma praia? Nós, passarinhas, observando ovos e vidas novas (já tivemos tantas) que estão por vir. Que Vāc nos proteja, te proteja no tempo das janelas e máscaras com vozes abafadas… no mais não há fim… só voz na cabeça, em qualquer lugar. Saudades da sua a menos de um metro. 

          Beijos e te amo,

          Marina Gazire Lemos.

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Imagem da capa
MAGRITTE, René. A página em branco – óleo sobre tela. 1967.

Nina Gazire é curadora, jornalista freelancer e mestre em comunicação. Atuou como professora universitária entre 2010 e 2018. Atualmente pesquisa animação e feminismos.

Carol Macedo é mestre em Comunicação Social (UFMG), co-idealizadora e editora da revista Marimbondo.