sonho inventado:
carta de glauco gonçalves para waly salomão

Goiânia, quarta ou quinta quarentena do primeiro ano pós-século vinte e um.

          Estimado Waly,

Tive dúvida se te contava de um sonho que tive contigo.
Achei por bem te dizer que esse sonho nunca existiu, mera quimera.
Invenção desajeitada e de pronto exposta, feito o osso do braço que quebrei aos doze anos.
Esse papo de poeta fingidor já deu, né?! O poeta hoje precisa (re)inventar formas de escrever bulas de remédio: poemas-prozac, rimas-rivotril.
Nesse sonho que nunca existiu, e que nem por isso é menos real, eu vestido de noiva te servia um café num terreno baldio na rua 57, no centro da cidade-césio. Você, que fingia dormir para ser capturado pelas lentes do Carlos Nader naquele filme, tomava teu café de pé e gesticulava com a mão que não segurava a xícara de porcelana. O que você me falava eu não consigo lembrar, algo próprio dos sonhos, mesmo quando inventados.

Eu te contava de um poema gástrico que rascunho pelas manhãs enquanto meu filho se entorpece com vídeos sobre robôs dinossauros no youtube.
Neste poema eu tento tomar teu excesso,
mas ele sempre tão intenso e imenso, não cabe no meu café.
Minha vontade de gestar no âmago do meu cólon o mal-estar da civilização
pari-lo em letras
pelo cú(-rto) do século-vinte-e-um-de-vinte-anos

me diz que fonte do editor de texto tem a forma do suco gástrico?
Eu te digo que estou a produzir um teclado de bile
que escorre
em linhas de intestino delgado

escrita-excremento

é dever do poeta, acordado, em sonho inventado ou em coma,
admirar a destreza do bolo fecal
que conta com a gravidade
para pousar dentro do estojo da criança
que já não vai à escola

escrita-excremento

esse líquido pulmonar
dá pra tomar

derrame pleural
algum poema precisa falar dele

escrita-excremento

o dever da poesia com mundo em estado de esgoto

pós-esia    
pó e cia

Esse desfazimento do mundo combina tanto com você
E eu te dizia isso naquele sonho que invento aqui.

Depois de tomarmos aquele café saíamos perambulando pelo centro de Goiânia. Você anda, fala, pensa, me olha e olha a cidade, e gesticula. Tudo ao mesmo tempo. Teu passo é rápido, tua testa coleciona suor. São três os botões abertos da tua camisa, dois deles são entre o peito e a barriga.

Num terreno baldio, engasgo com o ar puro que vive solitário dentro do buraco do tijolo baiano
o último ar sem vírus
cheiro cada um de seus oito furos
me irrita o concreto que o envolve
sólido demais para o buraco do meu nariz
Você me olha e ri, com os dentes empoeirados

Onde íamos?
Primeiro não necessitávamos de destino, ir já é um ponto de chegada. 
Não há lugar melhor que se perder — eu sei que estou te contando uma obviedade.
Mas tínhamos um plano: arrumar um modo de tornar minha poesia gástrica em estado de performance. 
A ideia foi tua.

Nessa cena inventada para um sonho inexistente adentramos, em meio à pandemia, uma lotérica para lamber seu corrimão metálico.
A fila para receber o auxílio emergencial é enorme.
Agora não vejo a tela branca por onde correm as linhas que vomito com meus dedos, 
vejo você, 
abaixado meio que de quadro metendo tua língua naquele corrimão metálico, frio. 
O gosto metálico, o sabor das impressões digitais.

Eu acordo do sonho assustado. O susto não é inventado, o sonho sim.

Acho foda ninguém ter guardado teu excesso num cofre, ou na usina de Angra II.
A vacina era você porra!

          Um beijo e um chêro
          Glauco Gonçalves

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Imagem da capa
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Foto de Waly Salomão. Sem data.

Glauco R. Gonçalves dedica-se ao estudo e à pesquisa dos desvios, degenerescências e derivas urbanas. Tem trabalhos sobre o direto à preguiça. Mergulhador de escombros urbanos. Garimpeiro de pequenos te(n)sões da vida cotidiana. Quando não pode fazer nada disso, é professor da Universidade Federal de Goiás e doutor em Geografia Urbana pela USP.

Waly Salomão nasceu em Jequié (BA), em 1943. Foi poeta, letrista e artista visual. Dirigiu espetáculos como Gal fatal – A todo vapor. Teve poemas musicados por artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé, João Bosco e Adriana Calcanhoto. Faleceu em 2003, no Rio de Janeiro.