do começo (ao fim):
carta de lisley Braun
belo horizonte, sete de setembro de dois mil e vinte
escrever por extenso o nome do ano mais se assemelha a gritar em meio ao silêncio das coisas. a gente começa com constrangimento e bem decididos — como quando fingíamos não perceber quão violento era terminar os adjetivos sempre em “os”.
minha primeira carta barrada foi meu pai quem impediu, alertando-me que na ocasião daquelas cinco páginas a mão, aos dez, eu me expunha em demasia. de lá pra cá foram anos de exposição, excessos, impedimentos, frustrações, não envios. tudo que flerta com a medida parece chegar no pai novamente, mas essa carta não é sobre isso.
em meio às cinco páginas havia solta uma foto minha, como essas do instagram nas quais sonho que alcancem destino, esforçando-me para caber inteira: eu presente. fantasia embaçada de auto estima. voo sobre desmoronamento. eu ausente. fica um certo tom de autopiedade, mas essa carta nem é sobre isso.
não foi simples retirar aquelas folhas da coleção de papeis de carta. lembro do cheiro de páginas rosas às quais acrescentei meu perfume de então. desfalcar uma coleção para dar o envelope como novo lar do desencontro. acreditar mais uma vez que estou me entregando demais quando na verdade nem da gaveta saí. poderia ser uma carta sobre entrega e verdade, mas não é.
com tinta azul escrevi daquele jeito torto a história que inventei para nós dois. repleta de anedotas, como gosto de falar da vida até hoje, a narrativa assumia curvas impensáveis e as curvas se desenhavam inenarráveis. de certa forma, toda carta é sobre o que não pode ser dito.
menos essa.
a ansiedade perfumou ainda mais aquele embrulho, indagação insistente a respeito do efeito daquele gesto sobre você. sensação de salto livre no abismo — sei que foi aí que me barraram. poderia escrever uma carta falando da minha teimosia em me lançar nos abismos, mas não escrevi.
a carta volta e meia se revira na gaveta. é reescrita e não enviada a incontáveis destinos com rostos diferentes iguais. repetição é essa arma apontada para a gente mesmo, o que renderia um excelente tema para uma carta que eu não levei a sério. e nem é o caso.
sonhei um dia que a carta chegou na sua casa e que você a lia de maneira atônita. pude sentir seus olhos me despindo à medida em que me insinuava nas palavras gigante e miúda, atenta e tola, morta viva — pequena criatura. acordei em sobressalto quando vi interromper seu olhar deslizante pois não compreendia o léxico que eu inventava. pensei recentemente em escrever uma carta confessando meus deslisleys, mas soou desnecessário.
se o tanto que minha letra melhorou desde os dez testemunhasse avanços em geral. se eu tivesse aquele mesmo desprendimento quando o assunto é solidão. se a sua não resposta não me congelasse no lugar de resto. e se restos não fossem tão sedutores — essa carta seria sobre isso.
mas é no final das contas, na última linha, no modo de despedir, que a carta se revela. ali ela se faz de sopa de letrinhas em promessas contagiosas. indiretas autocomplacentes, insinuações bregas, mentiras amáveis, verdades odiosas. binários medíocres, p.s.’s envaidecidos. dor. resto. repetição. silêncio. abismo. envio. não.
essa carta poderia ser sobre despedidas, mas não conseguiu.
com miúdo amor gigante,
sua l.
p.s.: alguma piada interna nossa disfarçando o desgaste dos anos, enaltecendo que sabemos rir de bobagens, enquanto não sabemos tantas coisas mais.
Imagem da capa
MARTINS, Maria. O impossível. 1945. Disponível em: https://www.select.art.br/amor-nas-bordas-do-impossivel/
Lisley Braun é psicanalista.