olhos em lampejos:
carta de maria trika para lina

Belo Horizonte, 10 de agosto de 2020.

Lina,

essa será a primeira carta.

Não sei o que te escrever. 

Até mesmo gravei um áudio, enquanto estava no chuveiro, porque uma carta inteira, pronta, apresentou-se enquanto cortava as unhas no escuro – a quarentena anda me levando a redescobrir o corpo. O áudio era para que eu não esquecesse. 

A carta seria sobre como você me ensina que a liberdade e o amor nascem juntas. Quando não coexistem, um sombreia a outra ameaçando-a. 

Mas esqueci. 

E agora, ao ouvir, somente escuto uma voz longe e o som da água caindo. 

Então,

terei que inventar 

para lhe dizer. 

***

Você lembra da primeira vez que veio?

Foi em meio a um voo. 

Estava longe de casa, indo para um lugar desconhecido. 

Antes que a aeronave tocasse o chão, você se rompeu em minha mente. Cegou meus olhos e entregou um texto inteiro, pronto. Junto à ordem que o escrevesse. 

Fiquei possessa. Bem puta mesmo. Te achando, desprezivelmente, petulante e enxerida. 

Não escreveria. 

Quando já andava pelo chão, percebi o absurdo de tudo aquilo. Afinal, estava sozinha e a ideia só poderia ser minha. 

Escrevi.

Quando pronta a li com os olhos em lampejos. 

Havia na minha palavra escrita algo que não me pertencia: um som sussurrado de outra voz no fundo das palavras, uma coisa estranha, uma memória que nunca tive, com corpos azedos que atritam-se nos espaços. 

Tudo ali me desconhecia.

é você

Não sabia como lidar contigo:

Sua escrita cospe. Rasgando as coisas, arranhando todas as imagens que cria, apoderando-se de palavras que jamais retornarão intactas ao ponto de serem ‘minhas’. 

Você as toma de assalto, as deseja para si. 

Faminta me arromba a forma e a vontade para, em seguida, desaparecer. 

Me deixa destroçada, cantando poucas sílabas que restaram para escrever como me reerguer. Impetuosa volta, somente para estilhaçar tudo o que construo.

Vem como e quando quer. 

Com o tempo, apenas aceitei a tua escrita na minha, contaminando as ideias, as palavras e os desejos. 

No entanto, como contestação, mantive uma ponta do meu nojo por suas estórias e um ranço da forma com que as manipula. 

E agora? – me perguntava.

Depois de muitos meses, você absorveu o sono de uma noite, debruçou os cabelos sobre meus dedos e teceu um cont(que desisti de ler ao acordar). 

E agora? 

***

Quando escrevi pela primeira vez, te senti. E, agora, te relendo, perco até o cheiro, a desconheço ainda mais do que antes.

Algo na sua energia vital vomita em cima do mundo e o morde de volta. Em cima do vômito, da carne podre e das coisas mais desgastadas.

Você devora.

deixando-se ser devorada.

ensina

a não negar a fúria e a raiva das coisas. A energia agressiva que aguenta nossos corpos. O sentimento da reação, a ação das coisas: o tesão que dói ao invadir a rua, o amor que treme ao se movimentar por dentro, a febre ao roçar o corpo da mulher que amo, o rasgar da voz ao ter que me fazer escutar, a possibilidade de levante em espanto ao ver uma cena…

Qualquer energia que sirva como devoradora dos contratos da passividade, que nos obrigam a manter a agitação numa única cadeira.

Hoje, apenas sinto tua escrita 

‘apoderando-se de mim quando quer’, 

escarrando pelos meus dedos 

a fúria necessária das coisas. 

Inclusive aquela que desconheço e

a de meu próprio corpo,

no escuro, cortando as unhas.

Como você habita o seu corpo?

Com amor,

 Maria Trika

ps:.

Quando     você voltar. 

           As suas palavras

     esperam                             

  . 

           algumas vírgulas 

fazem 

falta                                    

  .

Imagem da capa
TRIKA, Maria. Sem título. 2020.

Maria Trika é artística plástica, cineasta, crítica de Cinema, poeta, pesquisadora e ex-aluna do Casa Viva.

Lina

1.1 Lina: nome de origem grega / latim . Significado: “da lagoa” ou “linho, corda, corda de instrumento musical”.
1.2 Lina: nome de origem árabe. Significado: Suave ou cheia de suavidade.
1.3 Lina: O nome Lina vem do grego “lina”, mensageiro, do latim “linum”, lin, do árabe “lina”, terno. Significado: O nome Lina significa “Linha, palmeira ou ternura”.
2. Lina: é o nome que A Voz escreve.