once in a lifetime:
carta de pedro rena para urik paiva

Belo Horizonte, 3 de junho de 2020.

         Querido Urik,

Sempre nos lembramos que a primeira vez que nos vimos — mas a primeira vez é sempre — foi no curso do Peter Pál Pelbart, em 2016. Só fomos conversar, porém, numa noite na sinuca, depois do memorável show do David Byrne, em 2018. Fico pensando se esses dois personagens que mediaram involuntariamente nossos encontros não dizem algo sobre nossa amizade, sobre nossas afinidades intelectuais: de um lado, um pensamento que se faz no delírio, no absurdo; do outro, um pensamento que canta, e dança. Não por acaso, inventamos juntos a surrealpolitik: uma revista-por-vir, algumas festas-que-vieram. Um projeto de publicação de textos artísticos e políticos que elaborassem e intervissem no nosso surreal momento político no Brasil e no mundo; encontros dançantes em que ensaiávamos na prática nossas ideias — compondo pequenos textos de divulgação, livres-coreografias e playlists.

Tudo começou (ou pelo menos uma parte importante do processo), naquela noite em que fomos parar, por obra do acaso, no show do David Byrne — desses encontros que acontecem once in a lifetime. Quando entrei, o astro das cabeças falantes segurava um estranho cérebro em suas mãos. Você gosta sempre de enfatizar que o cérebro funciona não só para dentro, mas também, e principalmente, para fora, de modo que estamos sempre conectados com aqueles que amamos. Naquele dia, Byrne empunhava, literamente, seu próprio cérebro para fora, de maneira a conectar todos que compartilhavam aquele espaço-cósmico-transcendental (“aquilo foi puramente físico, Pedro! aquilo foi um show-ensaio, um ensaio imanente da amizade que estava por vir”, você diria).

Alguns dias atrás assisti uma outra palestra do Pelbart, na Bienal de Arte com o tema “Como viver juntos”, em que ele se propunha a pensar provocativamente outra questão, não separada desta do título: “Como viver só?”. O seu argumento é que vivemos em um mundo capitalista de excessiva conexão, onde somos obrigados a responder automaticamente a estímulos 24/7, não podendo e não conseguindo nos desconectar nem sequer por um minuto, numa verdadeira saturação de interligação, promovida pelo mundo digital, pelas redes, pelos smartphones. A nossa dificuldade — e o que o capitalismo também recusa a aceitar — seria a desconexão. Nas palavras de Pelbart: “nós sofremos de um excesso de comunicação, estamos trespassados de palavras inúteis, de uma quantidade demente de falas e imagens, melhor seria arranjar espaços de solidão e de silêncio, pra que se tivesse por fim algo a dizer. Do fundo de sua solidão, os indivíduos não revelam apenas a recusa de uma sociabilidade envenenada, porém são um chamamento para um tipo de solidariedade nova, o apelo por uma comunidade por vir.” 

Fomos atravessados, então, por esse terrível vírus que nos obrigou a criar uma interrupção no fluxo e no tempo das coisas (que, por sua vez, podem também ser rapidamente incorporados pela lógica neoliberal). Mas fico pensando se nesse viver só, nessa solidão povoada, não podemos inventar uma nova forma de lidar com a saturação de conexão, com a produção em massa de informação, com a criação de outros tipos de comunidade. Penso se, nesse espaço virtual do Geografia epistolar, ao invés de apenas produzirmos mais dados e informações, pudéssemos criar também um certo espaço de silêncio, que abrigasse, de alguma maneira, mais dúvidas que respostas, mais reflexões que afirmações. Sem perder o silêncio, o que você me diz? 

Estava por aqui lendo o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, que vem comentando ativamente a situação do novo coronavírus. Han reflete já há alguns anos sobre a nossa sociedade ocidental da transparência, em que existe um registro total da vida, uma produção informação absoluta, um totalitarismo digital, uma exposição intensiva das vidas na internet. No livro Psicopolítica, Han pensa sobre as novas técnicas de poder relacionadas ao chamado dataísmo — ao big data —, através do qual os governos e empresas neoliberais controlam e monitoram a nossa psique, os nossos desejos mais secretos e íntimos (“os big data talvez tornem legíveis aqueles nossos desejos dos quais nós mesmos não estamos propriamente conscientes”); um sistema de poder em que nós mesmos nos controlamos o tempo todo, submetidos a uma servidão digital: “os dados coletados também são publicados e trocados. Assim, o automonitoramento se assemelha cada vez mais à autovigilância”. Como se com o big data alguém pudesse manejar nossos cérebros, como Byrne o empunhava no show.

Assim como Pelbart, Han termina o livro falando da necessidade de uma política do silêncio, de uma forma de comunidade que se opõe “ao poder neoliberal da dominação, à comunicação e à vigilância totais.” Ele se pergunta: como se “comunicar através do não comunicável?”; como criar “espaços abertos de silêncio, quietude e solidão, nos quais é possível dizer algo que realmente merece ser dito”? (E que esse espaço de silêncio não se confunda com um silenciamento crítico dos intelectuais frente ao espantoso governo que vivemos). Sei que as perguntas não têm resposta fácil, e que não seremos nós a respondê-las ou a criar pretensiosamente algo que “mereça ser dito” — mas será que não podemos nos dar a liberdade de ensaiar um espaço aberto à interrogação, às perguntas, à suspensão, a um outro tipo — mais hesitante — de comunicação? Gostaria de lançar questões a amigos, professores, pensadores, artistas, saber o que estão pensando, o que estão lendo, como estão agindo diante disso tudo. Sem perder o silêncio: você me diz?

Espero que esteja bem!

Pedro.

Imagem da capa

HAUCK, Carlos. Carnaval, desengano. 2018.