órbita:
carta de urik paiva para pedro rena

Belo Horizonte, 3 de junho de 2020.

         Querido Pedro,

Uma vez nós dois subimos correndo a Antônio Torres ébrios e loucos, numa dessas noites em que somos ébrios e loucos. Quando chegamos em frente à casa da Claudinha, que lhe hospedava por uns tempos, deitei-me no asfalto, ofegante e contente, e você resolveu dar voltas vertiginosas em torno de mim. Tonto de afeto, eu girava com o pensamento, a cabeça imaginando um grande mecanismo. Sem decidir entre querer que você corresse para sempre, mas sem o benefício de poder chegar mais perto de você, e levantar para correr com você, mas sem o júbilo de tê-lo como uma cabeça estrelada no céu noturno, gravei a cena com o celular. Ao rever o vídeo, percebo que esse momento é uma divisa da nossa amizade: uma relação de ofegância, alegria e movimento — dois corpos orbitando complacentes entre si. A ideia de apostar corrida é gesto infantil que, desconfio, aponta para nosso desejo de termos sido amigos desde a infância, e não já cheios das perturbações concernentes à vida adulta. Esse desejo, gostamos de expressá-lo por meio de nosso deslocamento fictício pela vastidão do tempo, o que nos faz presentes, lado a lado, como dois soldados na guerra do Peloponeso, dois ajudantes de um pintor renascentista, dois bobos da corte de um reino qualquer, dois astronautas flutuando no espaço, no rumo dos anéis de Saturno, dissidentes da corrida espacial; como Franz Kafka e Max Brod naquela foto em que estão na praia; pelo que sei, a única em que o sofrido Franz aparece sorrindo. 

A tessitura de um passado de encontros é gesto de invenção e absurdo que muito me interessa. Temos nós dois, aliás, o hábito de ostentar o absurdo, em nossos mais francos diálogos e na relação com o que nos é externo. Eis o trabalho de uma engrenagem — uma máquina!, você diria — que tem funcionado naturalmente bem: nos alivia do real, afasta os chatos e agelastos e nos impele à criação; executa a tarefa de “lutar contra o pragmatismo e a horrível tendência à consecução dos fins úteis”, como diz Cortázar. Mas o mundo fez seu próprio lance e tornou absurdo o projeto óbvio de sair num fim de tarde, polinizando os bares com trocadilhos bobos e frases de efeito quaisquer.

Contra o caminhar dos afeitos ao dandismo, a praga do imobilismo que separa e isola os corpos. É infernal. Caronte (usando máscara) nos trouxe até aqui. Há quanto tempo que não nos vemos? Desde o aniversário da Manu, eu acho. Distância perturbadora e torturante, que aplacamos com conversas e trocas diárias, o que não é a mesma coisa de estarmos — eu ia dizer ombro a ombro, mas os meus ombros batem no seu joelho — ladeados fisicamente. 

Por parte de um tempo difícil, há sempre espessas exigências. Creio que este tempo da pandemia nos pede algo mais que abertura óptica para certas questões. É preciso ter com essas questões que se esticam sobre nós — e produzir e manusear ainda outras. O isolamento social tem me oportunizado a tal, não apenas por causa do acontecimento sanitário, pois veja só o que acontece politicamente no Brasil e nos Estados Unidos. 

Passados três meses de isolamento social, a ideia de pensar acompanhado parece bem sedutora. Como colocar as solidões para trabalharem juntas? O instrumento da carta me parece agora forte o suficiente para dar conta de uma textualidade em rede — dramatúrgica, convergente, maleável, sensual — que estabelece uma certa noção de deslocamento geográfico justamente quando estamos em agonia espacial. A carta é um agente móvel, um serzinho volante que nos leva para visitar os outros, intrometer-se nos assuntos, contar, atingir, afetar. Há cartas de vingança, cartas de amor, cartas de confissão. Linguagem é jogo, então o convite é para as cartadas. Se uso o nome carta, recorrendo também ao contexto material — envelope, selo, letra cursiva, saliva como lacre, ida à agência do correio, carteiro, o carteiro é bonito, nunca beijei um carteiro, nunca troquei saliva com um carteiro, a saliva é um meio, o meio é a mensagem, isso é tão antigo, a história universal da correspondência é a história universal da saliva, quando o amor é correspondido, estímulo e resposta, nem todas as cartas são respondidas, a solitária saliva, como juntar duas solidões, extravio —, é para remeter ao preparo esmerado da mensagem, pois a proposição aqui não é uma promoção do turismo do coronavírus: as cartas serão virtuais, e-mails que se fingem cartas — disfarces, fantasias: “Contudo, esta é uma carta” (nosso amado Drummond). É chegar também ao gênero e seus bons exemplares: da Carta ao Pai às trocas entre Lygia e Hélio. As cartas entre os mineiros Hélio, Otto, Fernando e Paulo, belas peças de cumplicidade. Cartas de Rilke a um jovem poeta. Numa dessas, aliás, Rilke cita o que seu interlocutor lhe escrevera: “viver e escrever no cio”.   

Estou me sentindo disposto à escrita, como uma maneira de sair de casa, driblar as circunstâncias. Você já escolheu seus interlocutores, já escolheu para onde quer ir? Eu tenho já um punhado em mente. Com eles, vou falar dos assuntos vários, sérios ou não tão sérios, que me vêm às cabeças. Farei perguntas. “A pergunta, uma tecnologia”, eu disse isso num fragmento de poema só enviado para você e para mais ninguém. O ponto de interrogação não se parece com um anzol? 

Então, perceba as órbitas e as forças. Uma carta desenha no mundo uma órbita. Se a questão é espacial, oportunamente devemos siderar o real, forjando um mapa outro — uma geografia epistolar: eis o nome do nosso intento. 

Com amor, 

U. 

Imagem da capa

SARONY, Napoleon. Max Brod e Franks Kafka. 1912.