delicadeza:
carta de marina baltazar para josé leonilson
Belo Horizonte, 2 de julho de 2020.
Leó,
fico pensando em possibilidades
se é possível escrever uma carta
para alguém que não mais habita
o seu antigo corpo morada tempoespacial
onde foram parar as ruas da cidade
que atravessavam a estrada estreita e longa
seus ventrículos pulsam outro cep noutro desierto?
se é possível algum tipo de relação
entre duas pessoas que nunca se viram ou
foram à mesma festa certamente já dançaram
a mesma música leram o mesmo poema
– amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem –
assistiram ao mesmo filme conheceram algumas pessoas
que já não são mais as mesmas pois os corpos envelhecem as células se renovam
ou não depois dos 30 as metamorfoses de raul ou warburg
– não vivemos outra coisa senão a metamorfose –
acometem a todos que tiveram a sorte
ou o azar de nascer
se é possível que haja tanta intimidade
se importa se eu te chamar de Leó?
é que antes te chamava Leo
mas veja bem que confusão meu companheiro
também o chamo Leo também José só que em outra ordem
e você não pode imaginar minha alegria
quando gabi me contou e sua irmã
lhe chamou Leó e ainda lhe chama parece todos os dias
algo se organiza nesse atravessamento
confuso percebi que posso sentir carinho
por você
tudo bem?
se é possível ou até mesmo lógico
escrever uma carta que não pressupõe
resposta
todas as possibilidades requerem algum argumento?
não que todas as cartas escritas tenham recebido respostas
mas o princípio esperança por vezes
invade como odeio usar metáforas de guerra mas enfrento esta repetição
não ter esperanças
que você apareça
vivo nesta catástrofe
e por mais que gostaria
não acredito em psicografia
em incorporação sim
por isso meio a tantas dúvidas
escrevo sigo a grafia torta
seu bordado com delicadeza
imagino nossas conversas
se você iria gostar de mim do que escrevo sobre
o que você escrevia
vivo nossas conversas imaginadas
chá ou café? chassi ou voile? vamos bordar enquanto
leio que você ainda habita
outros tipos de presença
seus homens ladeados estão
tatuados nos braços de
meus melhores amigos tristes
e de alguns estranhos também
percebo que quando fui à antiga casa
de sua mãe também entrei em mais um
universo que você habitava
habita não há um só dia
em que não pense que suas inscrições seguem
se incorporando em vários
silêncios outras formas de habitá-los
de compreender os corpos que
celestes nos rodeiam ou são rodeados por
toda esta poeira
de dúvidas e respostas sinto
que você já permanece permaneceu permanecerá
naquilo que você escreveu escrevo
meus amores só os tenho em minha cabeça
isso acontece
comigo também
tenho todo um abismo aqui dentro
voilà mon coeur
que não consigo <to dedicate>
il vous appartient
endereçar como você fazia em suas séries mas
queria agradecer e se aceitar
oceano aceita-me?
te dedicar
que você habita meu corpo
e eu nem tenho tatuagem só
esta carta desajeitada
cheia de possibilidades que procuram por
silêncios e oliveiras.
com carinho,
marina
_
Imagem da capa
LEONILSON, José. As oliveiras. 1990.
Marina Baltazar é mestranda em Estudos Literários pela UFMG. Formada em Letras pela mesma instituição. Pesquisa a obra de José Leonilson.
José Leonilson (Fortaleza, 1957 — São Paulo, 1993) foi um pintor, desenhista e escultor brasileiro.