Fragmentos em maiúscula:
carta-canção de clara delgado para flávio henrique

Belo Horizonte, 6 de julho de 2020.

Flávio

Tantas vezes te escrevi desde janeiro de 2018
Nesse tempo de janeiro de 2018 pra cá
Tenho escrito muitas letras de música

(É estranho te dizer isso te dizer
Do que faço do que fiz
Acho que você vê e sabe bem
O que tem acontecido por aqui
Desde janeiro de 2018)

Primeiro pensei em escrever ao Leminski
Ao invés de te escrever
(Li cartas dele ao amigo Régis Bonvicino
Mas não é por isso que eu escreveria ao Leminski)
Mas aí me lembrei de uma letra que escrevi
Pra você
No ano passado
Escrevi essa letra e mandei para o João Pires
Ele fez uma música tão bonita com essa letra
Flávio

____Nos traços de nanquim dessa cidade
____Beiradas de estradas das canções
____Boleros, seus esmeros são bordões
____Me lembro caminhar por Buenos Aires
____Língua que falavam os aviões
____Minas e Bahia pelos ares
____Das letras, onde há os corações?

O último verso não era uma pergunta
Mas gostaria de te fazer essa pergunta
(Também faria essa pergunta ao Leminski)
Gostaria de voltar a Buenos Aires
Não me lembro bem
Por onde andamos
Quais eram aquelas ruas de Buenos Aires?
Lembro de um restaurante lembro do vinho
Talvez de dois restaurantes
(Lembro do seu cachecol xadrez e da foto
Que você me pediu que eu tirasse
Você encostado na parede
Tirei a foto
Cadê essa foto?)
E a coisa da língua
Ouvir outra língua falar outra língua
Como você gostava da língua e eu também
(Você falava pouco
Mas eu me atrevia
Ainda me atrevo)

Te escrevi a letra em janeiro de 2019
Um ano depois de janeiro de 2018
Um pouco depois de ter sonhado com você
(A gente num vagão de trem e tudo 
Branco em volta
A gente sentado um de frente para o outro eu te dizia 
Que você não estava mais aqui
Que você não poderia estar ali
E você sorria
Não me dizia
Uma palavra)

Sonhei com você outra vez
E escrevi um poema (não foi
Pra você o poema foi só
Um poema)
Escrevi a letra em janeiro de 2019
Escrevi o poema um pouco depois
Um poema estranho
(Não sei bem
O que é um poema 
Estranho
Foi estranho escrever o poema
Foi estranho o sonho
Foi estranho – não couberam direito no meu corpo
O sonho nem o poema)

____I

____Copo d’água entre as linhas
____do mar: o que os olhos viram ao seu lado
____sobre grãos de areia.


____A canção em outra margem
____continua dizendo aos ouvidos
____que o corpo é outra coisa
____e comprovou seus dizeres
____em algum lugar que não na poesia.
____A morte do corpo te levou aonde?

____II

____Você não iria querer que eu mexesse
____nisso e calasse tantas outras formas
____de te ouvir. Você não iria querer
____que a canção estivesse na outra margem,
____ou que o sobressalto
____que me acorda fosse movido
____pela perda.

____III

____Nada inventa a canção – você disse.

____Tamanha a beleza das coisas que rondam 
____e se condensa nas pétalas 
____e nas linhas.

____IV

____Você embasbacado ao pé da cama
____me acordava urgentemente e queria
____que eu interpretasse meu sobressalto:
____é só um salto do lugar da canção,
____por que na outra margem?
____salte para perto dela e ela te dará
____uma palavra e uma nota,
____seguidas de uma noite
____à beira da cama
____para dar a si
____a palavra noite.

Você gostava de poemas
Preferi então escrever essa carta em versos
(Para o Leminski eu nunca escreveria em versos)
Preferi deixar as letras maiúsculas no início de cada
Verso
(Sabe que quando escrevo poemas não costumo deixar
Letras maiúsculas no início dos
Versos?
Mas quando escrevo letras de música sim
(As pessoas fazem assim? Escrever poemas
Em minúsculas não tem me feito escrever
Bons poemas
Nem escrever letras de música em maiúsculas
Tem me feito escrever boas letras de música)

Percebe
Flávio
Que eu te diria esse poema
Se você estivesse na minha frente agora
Eu te diria esse poema eu te faria
A pergunta 
A morte do corpo te levou aonde?

Percebe
Flávio
Que talvez o poema não seja poema
Talvez seja só eu te dizendo e te perguntando

Percebe
Flávio
Que a letra de música que o João fez virar música
Era uma letra pra você
Percebe uma coisa
(Tão inútil quanto te dizer)
Na letra de música
Há rimas (tão simples e bobas quanto inúteis)
E no poema não há rimas
Flávio
No poema não há ritmo
E nunca sei se na letra há algum ritmo

Percebe
Flávio
Que te digo já sabendo
Que você 
Não concordaria com nada do que te digo
Você me diria o contrário
Eu sei que você me convenceria
Como tantas vezes me convenceu
Que tudo isso que dizemos é bobagem
Vamos fazer as letras de música
E continuar dizendo as bobagens
E por favor
Flávio
Não esquece de me responder
As perguntas
Preciso das respostas

_

Baixe aqui o pdf da carta.

Imagem da capa

CÉSAR, Ana Cristina. Desenho. Sem data.

Clara Delgado é poeta, letrista, professora de português e estudante de Letras na UFMG. Está em processo de feitura do seu primeiro álbum, que apresentará suas canções inéditas em parceria com o compositor Flávio Henrique.

Flávio Henrique (Belo Horizonte, 1968 – Belo Horizonte, 2018) foi um cantor, compositor, tecladista e pianista brasileiro.