carta para alguém bem longe:
de susanna kahls para olga

Helena Markos Tanzgruppe, 7 de julho de 2020.

            Minha Querida Olga,

            Me pediram uma carta performance.
            Bem surreal, disseram.
            Ela seria endereçada a outrem.
            Mas minha carta, minhas regras.
            E resolvi lhe escrever mesmo sem tempo algum para isso, pois tenho escrito apenas para mim.
            Mas não se acaba com algo sem um fechamento. 
            Um closure.
            Um close!
            Faz parte do meu show. 
            Vamos lá?, seguiremos à risca rumo ao surreal.
            Único método para te acessar desde que você partiu para essa escola duvidosa de talento mínimo embalado de privilégios ancorados em rostinhos bonitos.
            Uma tristeza eu sei, enxergar dessa maneira, ofensiva, talvez. Porém me entenda, é muito duro ver uma promessa acabar como chaveiro de uma startup — ou seria começar no seu caso?
            Não me sobrou nenhuma outra saída em seu mergulho de ponta a cabeça no kitsch. E você mesma sabe, afinal de contas me conhece (há quanto tempo mesmo?), que o kitsch está para mim como a kriptonita está para o Superman.
            Será uma carta desabafo. Como aquelas que lotam os anais, que está no livro que eu te emprestei; aquele que fala das “pessoas dos livros”, como nós estamos sendo agora. Ou pior, como você, na tentativa de ser você mesma acabou sendo mais uma cópia de um livro que todos querem, mas não conseguem ler.
            Ai querida, eu ouvia o Thiago Pethit quando comecei a escrever essa carta, pois ela não foi escrita num rompante, porque não há mais rompantes; a psiquiatra explicou que eu atravesso essas tormentas agora numa espécie de primeira classe psiquíca. Não mais no vagão de minério chacoalhando entre “metais pesados”.
            Thiago cantava: O inferno está vazio, Cuidado mizifio, O inferno é aqui, Cuidado mizifi… Eu lembrei que o inferno também está cheio de boas intenções. Mas acho que você não se lembrou disso — e aparentemente de mais nada.
            E atendendo a pedidos, vamos nos ungir dos pés à cabeça em nome de uma nova mater: OBLIVIUM.
            Essa não é do Argento, nem do Luca, é minha mesmo. 
            Você vai ter de pesquisar no Google.
            Seu nome guarda um significado maravilhoso!
            À deusa oremos — e que sobre nós caia o éter dessa nova mãe. Maior que todas as outras mães, de todos os outros contos, de todos os outros prédios, de todas as outras festas; de todos os sussurros, de todos os medos, autores, diretores, assassinos, mortos, banidos, esculpidos, pintados, cuspidos, amados, desejados, corrompidos, idolatrados; de todas as crateras, vácuos, mantas, lebres, avatares e filtros. De tudo, de todos, mas nunca para todos. Porque oblívio é o ouro do desapego, das vestes, dos tetos, da merda, do som, da dor — e por que não das pregas também?
            Do funeral ao jardim, com ou sem chuva, ó mãe, rogai por nós e banha nossos olhos e ouvidos exaustos de puro esquecimento.
            Inunda de nada o que foi e transborda de nada o que será.
            E assim seja feita vossa vontade.
            Do lugar que você nos trouxe eu me despeço, com o enigma do espelho da madrasta má desvendado e sempre à mão: o belo nem sempre é o mais justo, porém o justo é sempre o mais belo. 
            Não há sombra.
            Nem há dúvida.

            Bjs

            S.

P.S.: Eu não caio when I look as a writer. 

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Imagem da capa

RAIC, Paulo. Sem título. 2020.

Susanna Kahls é um heterônimo de Paulo Raic. Hoje vive na Alemanha, reclusa, mantendo contato única e exclusivamente com seu ortônimo para troca de textos e nada mais.

Olga é dançarina no Helena Markos Tanzgruppe.