a propósito de estrelas:
carta de arthur nogueira para adília lopes

Belém, 14 de julho de 2020.


          Minha cara Adília Lopes,

Recebi com muita felicidade a mensagem da editora, dizendo que você “ficou com um sorriso” ao ouvir a música que fiz sobre o poema “A Propósito de Estrelas”

Desde Vinicius de Moraes, a música brasileira ergue pontes vultosas entre a canção popular e a poesia. Não sobre um mar de rosas, é claro. Vinicius mesmo, nosso poeta mais pop, foi afastado compulsoriamente da carreira de diplomata, durante a ditadura militar, porque sua atuação musical era considerada um risco à segurança nacional. É curioso que, nesse país que teve o caos como origem, tantos prefiram, ao longo dos anos, a tutela à liberdade. Agora, por exemplo, o Brasil está mais uma vez sob um governo ignóbil, devotado ao nada. Mas viva a nobre capacidade de minha gente humilde, que vai em frente, sem nem ter com quem contar. E viva também nossa canção luso-brasileira, herdeira da subversão de Vinicius!

Escrevo de Belém, no norte do país, dentro da épica Amazônia. Aqui é o centro do universo. Gosto de falar assim, porque li em Jacob’s Room, de Virginia Woolf, quando Mrs. Flanders escreve o nome de sua cidade natal em um envelope: “it was her native town; the hub of the universe.” Entretanto, isolado e, assim espero, protegido e protegendo os demais do vírus, é como se eu não estivesse na cidade. Ela está mais em mim do que eu nela, dentro deste apartamento, neste quarto, nesta cadeira em que lhe escrevo, e de onde não me afasto desde março. Não obstante, é mesmo errático meu rumo, porque viajo pelos livros, entre eles, os seus — seus gatos, suas baratas, suas estrelas.

Não sei como agradecer-lhe por tanto. Não há nada mais importante do que a música e a poesia para mim. Existe agora, no meio de nós, bem mais do que um oceano. Ainda assim, abraço-a com minha voz, e sou só bons sentimentos quando canto.

Gosto muito dos seus livros. Olha, eu gostava é de poder dizer eu gosto de você. E gosto. Nossa canção faz com que eu me sinta seu amigo.

          AN.

_

A propósito de estrelas
Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas

_

Baixe o pdf da carta aqui.

Imagem da capa
ANDUJAR, Claudia. Foto da série Águas. Sem data.

Arthur Nogueira (Belém, 1988) é cantor, compositor e produtor musical, com quatro álbuns próprios e canções escritas para grandes vozes brasileiras. É autor de melodias sobre poemas de Antonio Cicero, Adonis e Rose Ausländer.

Adília Lopes, pseudônimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, nasceu em Lisboa, em 1960. Começa a publicar a sua poesia no Anuário de poetas não publicados, da Assírio & Alvim, em 1984. No ano seguinte, publica o seu primeiro livro de poesia, Um jogo bastante perigoso, em edição de autor. Desde então, lançou diversas obras, sendo considerada uma das mais destacadas poetas contemporâneas em língua portuguesa.