queda:
carta de benedito ferreira para pio vargas
Faina, 19 de julho de 2020.
Pio,
O trabalho como sismógrafo na Papua-Nova Guiné chegou ao fim. Tentei uma transferência para a China, EUA e Reykjavík. Não deu nem para o Faina. Longe demais da conta e era impossível antecipar os soturnos terremotos que avançam em solo goiano. Aquele lugar teria sido melhor para mim. Mas, querido, estou aqui no cu do mundo. Busquei uma solução simples para aniquilar o que nos incomodava. O avanço indesejável de umas baboseiras, o bueiro apocalíptico de Goiânia e o pássaro triste de Pablo Neruda. Sei que sua obstinação no bar do Setor Central deve ter comemorado bastante enquanto planejava conquistar outros territórios. Estou certo de que você não viu o painel de Jesus com a mão vermelha comendo a melancia, o que é um problema para esta carta. Quando chove em Goiânia, penso na tinta escorrendo de modo a desfigurar a superfície, os olhos, o dedo mindinho, o sorriso vagabundo e o amarelo da composição. A porosidade das palavras resvala naquela conversa que gostaria de ter avançado. Foi logo após minha demissão, dois meses e cinco dias. Não teria dado tempo sequer para comprar um gorro para o frio. Queria conversar contigo sobre esse Jesus e sobre outras duas imagens do despertáculo que sigo organizando. Olha, não procurei um amigo seu, eu simplesmente decidi escrever para você, meio do nada. Um jeito de aproveitar a vida. Desculpa se tenho insistido nisso. Foi um jeito simples de imaginar como as coisas poderiam angariar novas expectativas. Entendi naquela outra vez que, para que se sinta bem-amado, não é necessário um laço bem apertado. É frustrante não lembrar o dia da fotografia do som automotivo com aquele cavalo amarrado. Tentei todos os registros de datas no celular, mas não deu certo. Gostaria também de ter visto a imagem de Jesus com cores ávidas, dias após sua pintura no prédio do centro. Penso naquele sorriso dele, no cavalo escutando uma música remixada e na sequência das luzes dentro do carro.
Meu amigo, existe um cálculo pouco palatável que compara o final desses tempos e a distância da antiga casa à Praça Cívica. Existe um lenço perfumado na poltrona iluminada pela janela. Existe uma cidade silenciosa no domingo à tarde.
Testemunho: aqueles que amamos, que nos encontram nos mesmos botecos, nossos parentes, seus amigos, Brandão, quem te cita em rodas de conversa. Talvez tenha faltado a Jesus descer do prédio ou que a corda do cavalo se soltasse, a pata firme no solo.
A gravidade é a prova cabal de nossa existência no mundo.
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Imagem da capa
FERREIRA, Benedito. Sem título. 2016.
Benedito Ferreira é artista visual.
Pio Vargas (Iporá, 1964 – Turvelândia, 1991) foi um poeta goiano.