a dança dos mortos:
carta de paulo bittencourt para fabiano calixto

Belo Horizonte, 25 de julho de 2020.

Disse-lhe sobre a imaginária existência de uma carta geográfica que indicasse somente uma cidade esquecida, ou, mais ainda, um cemitério abandonado no coração da cidade esquecida… (“Nominata Morfina”, Fabiano Calixto)

…a garganta da manhã ainda deglutia meu sono inquieto, paralítico. O sonho que antes era amálgama de inconsciência recebeu junto à luz que entrava da fresta da janela emperrada um aspecto de realidade, pois que os olhos se abriram, ainda estáticos, mas agora as imagens se faziam vívidas, enquanto, imóvel pois que preso, eu assistia àquela dança dos mortos: e como eu palmilhasse descalço por essa paisagem pétrea, que ali emanava violenta como um aborto, a sola suja de meus pés tateava aqueles fios encapados com tecido humano, intestinais. Padrões mecanizados em desconexão com qualquer fim-sem-saída, frustração incorporada. O ar era rarefeito e alguns focos de luz saíam do chão, iluminando parcamente em meio à sombra que dominava aquele cemitério de almas penadas. Ali parecia que a superfície não passava de um alusão pré-configurada, mas esquecida pela oxidação do tempo e da umidade. A chuva germinava seus cheiros pútridos, e a vida minúscula da terra não passava de probabilidade esquecida, e aquela civilização estava coberta pela peste, nessa praia de ossos. A ânsia diante de tal visão assim tão horrível era a do grito, mas a paralisia ainda tomava conta do corpo e, suspensa, a possibilidade de redenção parecia se esvair em meu entorno. As palavras eram elementos em rasuras forjadas, isoladas pelo signo brutal — o silêncio. Os parasitas rastejam, entre homens — ou seriam eles próprios os homens que agora assumem sua real forma e função: a de sugar o ânimo. O único movimento que ali se fazia visível era pendular, síntese da amargura que descera como chorume pela terra fúnebre, e que agora se tornara fonte para esses vermes transfigurados no reino sem rei de pedra em que se roem sob a angústia universal. Angústia é viver de costas — o chumbo de não ter asas —, suspensão do que já fora a palavra, poalha anterior: ritmo invisível. Aqueles que nascem presos não anseiam pela liberdade, pois que ela sequer existe. Sua concepção é ainda potência: luz artificial, num bulbo já fosco pela poeira, o sempre mal contato provocando o ruído cacofônico — o tungstênio maldito que aquece e apodrece o esgoto em que rastejam. Paralisia — essa é a dança a que estão condenados todos aqueles que se recusam a levantar a cabeça aos céus, conscientes de sua efêmera estadia em vida. Aqui não há mais, ou talvez jamais houvera, o movimento. Queixo no peito, visão rasteira, reles, presa ao chão — condenada a jamais erguer visão além. Música infinita reduzida à esperança finda, nesse mar de mortos.

Jamais dançarei novamente, até que dance com os mortos.

Quanto custou-nos a poesia, Fabiano?

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Imagem da capa
BECKETT, Samuel. Frame do filme Film. 1965.

Paulo Eduardo Bittencourt nasceu e criou-se em Belo Horizonte e é estudante de pós-graduação em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente com a ocupação de professor, sua carreira como ensaísta e escritor está, ainda, como uma semente a germinar mundo afora.

Fabiano Calixto é poeta, nascido em São Paulo. Tem publicados 10 livros de poesia, dentre eles o recém-lançado “Fliperama”, da Editora Corsário-Satã, comandada por ele e pela também poeta Natália Agra. Além de poeta, Calixto é crítico de literatura e tradutor, tendo também publicações importantes em ambas as áreas.