sem artifício:
carta de dora bellavinha para manoel ricardo de lima

Belo Horizonte, 21 de julho de 2020.

      m, querido,

já estou chorando.
quantas confissões são permitidas em uma carta aberta?
se ana c. ainda estivesse colada comigo eu não faria essa pergunta e seria sim muito muito fingida e debochada mas inteiramente eu (sob a máscara).
mas vc disse recente dessa coisa que gosta em mim, que eu não tenho artifício.
então aqui, escancarada ______________

a geografia epistolar me aproxima de sua geografia aérea
e sinto a sobra das coisas
a sobra de todas as coisas 
e a nossa desconfiança: para falar de segredos: sinto falta da sua cara no sol, não numa fotografia exata, mas no fogo do astro, 
porque temo mesmo o rosto escondido na sombra do medo, do horror, da dor. 

sinto falta de te olhar nos olhos sem mediação de tela
e ouvir fulgores de leminski a benjamin
mishima a pasolini
é por isso talvez que eu tenha dito que amava ainda mais sua aula que seu texto:
o corpo a corpo, e você vendo que eu choro sempre, sem artifício.
retifico: na distância obrigatória estou finalmente corpo a corpo com seu texto, e ele me olha, 
e me molha.

sinto que poderia te escrever uma carta infinita
por esse infinito que vc abriu na minha cabeça. 
é uma fissura imensa que se estende a todo corpo, 
você fontana, 
seu gesto faca, 
sua palavra só lâmina
ilumina meu ponto cego.

e afastando tudo do centro, 
você me disse,
e tudo descentrado não resta nem margem
o espaço aberto
o aberto — llansol, rilke —
eu disse: é também assustador.

lembro de outra coisa:
as mãos, você me diz, 
é um livro de guerra. 
eu leio em voz alta: muitas vírgulas.
eu penso que as mãos é um livro gago
gaguejo 
e penso em carmelo benne 
e penso que vírgulas
inserem uma pausa na luta ao mesmo em que são a luta
contra uma fala infinita que é só dizer
sem dizer nada.
eu quero é a CONVERSA infinita, isto é: ouvir.

(entendo aos poucos a necessidade de um centro vazio, o esforço de esvaziar o centro, de deixá-lo disponível para tudo e nada, mas quando vejo, fui arrastada para o meio do redemoinho e o centro sou EU)

pronomes possessivos.
aquela sua live com annita me deixou em brasa: não consigo eliminar os possessivos. 
EU estou no centro e ainda sim, onde?
isso tem sido papo de terapia, enquanto discuto o que me é próprio (eu, meu).
difícil fazer análise com essa ideia na cabeça 

você conhece o deserto, manoel?

aqui está. e não.

me sento ao lado esquerdo da sala, sempre.
você me diz: a sua escrita quer colocar o tempo da terra na universidade.
fico trêmula: será possível plantar esse jardim que o pensamento permite?

ou será só deserto?

sobreviva daí, tá bem? 

mande cartas
mande músicas (mesmo quando achar que não estão tão boas)
mande fotos do teo 
e suas: com a cara no sol (mesmo quando sombra)

eu vou sobrevivendo daqui, procurando presente no gerúndio
e mando fotos do quintal.

          com amor  _________,

          isa.

Imagem da capa
FONTANA, Lucio. Conceito espacial: espera. 1960.

Dora Bellavinha é artista e professora de Literatura. Dirigiu o projeto Entre – uma casa que se torna [instalação + performance cênica], em torno da obra de Maria Gabriela Llansol. Escreveu e dirigiu o espetáculo Antes que você parta pro teu baile, a partir de textos de Ana Cristina Cesar. Escreveu e dirigiu o curta-metragem Por onde se entre. Integra o coletivo Pira-Poesia, de experimentações poéticas audiovisuais.

Manoel Ricardo de Lima nasceu em Parnaíba, no Piauí. É filósofo, poeta e professor da Escola de Letras e do PPGMS da Unirio. Publicou, entre outros, Pasolini: retratações [com Davi Pessoa]; Avião de alumínio [com Júlia Studart]; Maria quer o mundoA forma-formante: ensaios com Joaquim CardozoGeografia AéreaAs mãosFalas inacabadas [um livro-transparência, com Elida Tessler]. Seu mais recente livro, o método da exaustão, está sendo lançado em agosto de 2020, pela Garupa Edições.