giro em falso:
carta de maraíza labanca para rodrigo brum

Belo Horizonte, 23 de julho de 2020.

Não sei ainda como começar. Acho que você sabe que tenho lá minhas questões com os vocativos, com os modos de chamar o outro. Aquele poema que sempre distorço um pouco, da Ana Cristina C., do Deserto, você sabe qual é? Toda vez que me chama pelo nome, a matéria de que sou feita estilhaça… Bem, mas um nome é diferente de um vocativo, eu sei… Mas como chamar alguém tão próximo? O que colocar ao lado para acompanhar — suavizar? — esse nome próprio que pode até estilhaçar? (Querido? Meu? Saudoso? Caríssimo?) Não sei qual escolher, uma vez que todos me parecem artificiais, imprecisos, quando tento me dirigir a você. Então aparece essa outra mania tão minha: ficar girando em torno do começo, como quem gira em falso. Talvez porque eu tome o começo como um centro, um princípio de vida — princípio no sentido de uma lei, uma causa, uma proposição. Então fico girando em torno do que me causa, como se diz na psicanálise, um pouco desacreditada em relação ao sentido temático. Eu desconfio dos temas e fico com a música das coisas escritas. Eu acho, meu amigo, que desconfio — assim como dos vocativos — das coisas sem causa. E a causa talvez seja a impulsão da pergunta. Afinal de contas, o que me leva a escrever para você, eu que ando tão exausta do acúmulo de trabalhos sem fim em época de pandemia — lavar, limpar, cozinhar, atender, revisar, editar, cuidar? Ainda me arrisco a trabalhar um pouco (a) mais aqui neste tipo de trabalho que — mais que as outras artes, talvez — parece fugir tanto à lógica capitalista: a escrita literária. Eu não sei as respostas, mas sei dizer que é um trabalho, um trabalho cuja remuneração não é mesmo mensurável, facilmente mensurável, pelo menos. E eu trabalho, como nunca. Mas, acho que você deve saber, o trabalho não é o meu tema. Já foi, por um curto período de tempo, lá pelos idos anos da juventude. Logo se resolveu, a causa se colocou, e eu envelheci, como quem rejuvenesce pelas clareiras do impossível. 

Meu amigo, como chamá-lo? Como fazer esse apelo? Ainda não sei… Talvez esta carta vá assim, sem vocativo, porque toda ela é um vocativo… no sentido em que o Nancy fala, você se lembra? Desse apelo ao outro, um apelo vocal. Então eu talvez não diga nada aqui. Talvez, inclusive, nunca tenha havido nada a dizer. O que a humanidade faz, o tempo todo, é esse apelo, essa convocação às vezes desesperada… A anunciação de uma falta. E há tanto tempo você não me grava um poema… Sinto falta da sua voz. A gente ficou muito próximo tão rápido, depois tão longe! Sabe, tenho lido o Derrida e o Barthes como nunca, e aí me lembro de você, de como você estudava o amor neles. Tema imenso, o amor… ou teima? Teima a-temática, como me ensinou a Julia. 

Sabe, eu acho que giro em falso em torno de uma verdade. Isto é, giro en vrai? Talvez eu só possa sair de um começo se seguir pelo amor, assumir o tema e a teima — alguém me disse. Mas às vezes acho que, ao mesmo tempo, esse é o tema de todos os começos, causas. Veja: até agora não falei sobre nada… exatamente. Ou melhor: giro em torno da verdade inatacável de que nunca houve nada a dizer. A gente troca algumas palavras, a gente dá uma palavra, faz promessas. Chama. Suplica. Ri. Você ainda ri da psicanálise e de seus fantasmas? Sinto falta daquela época em que te conheci e em que me sentia muito viva pela sua entrada costurando tudo, a dança das cadeiras e todo o vinho derramado. Éramos deliciosamente irresponsáveis, não éramos? 

Meu amigo, digo-lhe, aqui da lonjura da minha saudade, muito real — dessas de matar a gente: o Egito me parece, agora, um lugar ficcional, 

          assim como o amor. 

          Da sua
          Maraíza

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Imagem da capa
GABO, Naum. Translucent Variation on a Spheric Theme. 1937. Disponível em: https://thecharnelhouse.org/2015/02/22/naum-gabo-and-antoine-pevsner/naum-gabo-translucent-variation-on-a-spheric-theme-1937-2275-inches-high/

Maraíza Labanca é escritora e conduz oficinas de escrita no Espaço a’mais. Publicou os livros: Refratário (2012), Rés – livro das contaminações (2014, com Erick Costa), Partitura (2018) e Exceto na região da noite (2019). Tem doutorado em Estudos Literários pela UFMG e é também uma das editoras da Cas’a edições.

Rodrigo Brum é cineasta e pesquisador, atualmente morando no Cairo. Tem mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestrado em cinema, vídeo, novas mídias e animação pela School of the Art Institute of Chicago. Recentemente, dirigiu o seu primeiro documentário, Like Someone Who Hears a Very Sad Song (em pós-produção), filmado em Cabo Verde, onde viveu quase um ano. No Cairo, ele faz parte da equipe da produtora Ambient Light. Brum ensinou filosofia e cinema em instituições no Brasil, Estados Unidos, Cabo Verde e Egito.