das tripas coração:
carta de thálita motta

Belo Horizonte, 08 de agosto de 2020.

          A um amigo,

Eu não me lembro a última vez em que rimos juntos, e não me lembrava o que havia acontecido para que nossa distância tomasse todo esse fôlego e, como numa retenção respiratória, perdurasse nesse silêncio por tantos anos. Pelas minhas contas, não nos falamos há uns quatro anos e foi terrível quando me lembrei, num lapso, que havia sido eu a cometer uma inconsequência. Um rompante, uma vontade de me libertar de qualquer diplomacia entre nós. Havia uma pressa nisso: eu não aguento o tempo certo da ruminação, essa mania de chegar logo no intestino das coisas. Por que diabos a memória nos troça? Uma memória-saci. 

Me lembrei outro dia daquela vez em que esperávamos um ônibus para sabe-se-lá-onde, e eu, distraída que só, fui interpelada por uma velha, uma completa desconhecida, alguma Baba Yaga ouropretana que, com a força intestinal das palavras diretas ao ponto, disse assim: minha filha, o seu coração é torto. Sem mais nem menos. Torto. O incômodo mal disfarçado ao ouvir essas palavras na sua presença, você com esse coração de mistério! Era mais fácil chegar logo ao intestino. Besta-é-tu, no caso eu, que achava, no meu ingênuo materialismo dialético, que todo mundo haveria de ter um coração torto. Inocente, não sabia de nada. Era assim tão torto que poderia ser visto a olho nu? E se o coração estivesse no lugar errado, no lugar do estômago ou de um pulmão? Com isso me veio, como quando criança, a ideia de que os órgãos pudessem não estar todos em seus devidos lugares.

Fazer das tripas coração, a frase que me retorna como um mistério mal resolvido. Isso de fazer um grande sacrifício, algo além do nosso alcance, por algo, alguém, alguma coisa que — imagino — se queira muito, muito, muito, ou mesmo se deseje! Mover a função dos órgãos por algo, alguém, alguma coisa que — imagino — precise assim de tanta força, uma força visceral, peristáltica. É preciso muita fé, ou mesmo um amor incondicional, uma certeza muito grande em algo, uma aposta alta para mover órgãos, como um bom cristão que move montanhas ou que está disposto a abrir seu filho, longitudinalmente, se assim Deus ordenar (Gênesis 22-24). Um capricho. 123 testando! Um sacrifício por um capricho, um sacrifício por convicção, coisa que perdi em meio a algum órgão menos importante e à ideia insuportável de fazer parte de algo que não está certo, ainda que bem-intencionado, como nós fizemos em 2013, época em que o inferno era uma multidão de grandes outros. Nós sempre fomos (bons mineiros) desconfiados. Hoje eu invejo qualquer fé, qualquer vontade de eternidade, qualquer coisa que deseje perdurar, porque as coisas se movem muito depressa e não há estômago que aguente. Ou há — desconfio.

Penso em Rabelais, com aquele compilado enorme, com tantas imagens chão-de-feira que até hoje povoam qualquer coisa que eu faça. Deve ter feito das-tripas-coração para escrever uma ode ao baixo corporal, resquício da praça pública medieval, um tempo-lugar em que evidentemente nunca estive — meu Deus como eu amo um hífen! — e que volta e meia frequento ao abrir qualquer das quase mil páginas só para ler aqueles absurdos, horríveis e apavorantes, como o autor mesmo nomeia, dos Grandes e Enormes Gigantes Gargântua e Pantagruel, reis tão caprichosos quanto gulosos. Prefiro o horror de uma outra época, um horror na linguagem, literário. Eu fujo! Me pergunto dos caprichos dos Grandes e Enormes Gigantes do Todo-poderoso em Gênesis 22-24:

Abraão, Abraão! E ele disse: Eis-me aqui.

Amanhã é dia dos pais e me pergunto se Abrãao por acaso fosse Sara, mãe de Isaque, estaria assim tão disposta a cortar, observe, com um cutelo, o teu único filho? Eis aqui o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto? Isaque não sabia de nada, inocente. Sua vida em troca de algumas sementes, estrelas dos céus e areia da praia. Se bem que (…). Por um instante me corrompo. Abraão, o pai, pela fé, pronto para abater seu filho por um capricho divino em troca de abundância; eis-me aqui: materialista e dialética! Sinto estranha compaixão por esse pai disposto a matar o filho, um pai que é um homem de fé. Hoje abandonar é a regra, uma forma de matar sem cutelo. Materialista e dialética, blasfemo. Imagino o terror de Abraão, um terror não narrado: Então, se levantou Abraão pela manhã, de madrugada, e albardou o seu jumento, e tomou consigo dois de seus moços e Isaque, seu filho; e fendeu lenha para o holocausto, e levantou-se, e foi ao lugar que Deus lhe dissera. O narrador não se preocupou em demonstrar que Abraão fazia das-tripas-coração. Servia com fé, sem hesitar, sem desconfiar. Que inveja da convicção! Fosse o Abraão mineiro, teria se inclinado diante da face do povo da terra tão placidamente, depois de enganar seu filho? Eis aqui o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto? Isaque, se é de graça é porque o produto é você. Haja terapia! Freud teria deitado o cabelo. Espero que você ainda esteja fazendo terapia, não se vive bem com um coração de mistérios. Antes torto, como a vida. O que eu não daria para que nossos corações e nossas tripas pudessem ser apenas coração e tripas? Um filho? Um sacrifício à la Tarkovski? Desconfio. Tomara que não!  

          Com ternura e uma gotinha de limão-capeta,

          Th.

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Imagem da capa
DORÉ, Gustave. L’Enfance de Gargantua. 1873. Disponível em: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Gustave_Dor%C3%A9-L%27Enfance_de_Gargantua.jpg

Thálita Motta é geminiana com vênus em câncer que se dedica ao campo do teatro como pesquisadora, diretora criativa e pau-pra-toda-obra na direção de arte. Vem se aventurando de mansinho como dramaturga desde os sete anos de idade. É doutora em artes pela EBA/UFMG e professora no Cefart/Palácio das Artes. Colabora em vários coletivos, dentre eles, o Coletivo Transborda e o Mulheres Encenadoras, em Belo Horizonte.