os pequenos países:
carta de urik paiva para dante

Tende-vos duros, da bonança à espera.
Virgílio

Can you establish stations. I can establish stations here.
Gertrude Stein

mas era um fogo
desabrochado.
Jorge de Lima 

I plan on writing an epic poem about this gorgeous pie.
Gordon Cole

Praga, 25 de julho de 2020.

          Querido Dante, 

Nem me pergunte como está sendo viver há dezessete dias no Aeroporto de Internacional de Praga, que se chama Václav Havel, em homenagem ao ex-presidente da República Tcheca e também autor de poesia concreta e teatro do absurdo. Sem falar que liderou a educadíssima Revolução de Veludo, em 89, na saída do país do regime comunista. Ah, mas esses tempos, eu penso agora, não são de veludo, se é que já houve tempo assim. Bem, estar aqui, vivendo em desconfortáveis poltronas e tomando banhos precários, é tentativa de melhorar um pouco as coisas. É verdade que já estou aguardando por demais o que me foi prometido, mas enquanto espero, observo o trânsito de tipos muito estimulantes, sobre os quais me divirto criando histórias. Então decido escrever a você, com quem sonhei noite passada até acordar, como já é costumeiro, alvejado pela bengala do rabino Shmuel, que vem ao aeroporto todos os dias esperar por alguém que não se sabe. 

No sonho, você mia e mia, filhote indefeso que não se contenta com nenhuma quantidade de leite. Não é leite que você quer, não é? Então lhe ofereço cerveja e depois vinho, e leio para você um poema de Ana Cristina Cesar chamado “O gato era um dia imaginado nas palavras”. E fico repetindo esse verso, até que você passa a ser um felino gigante, estranhíssimo, desses que não existem mais ou nunca existiram. Nós conversamos, usando palavras grandes, cada vez maiores, numa língua difícil de identificar. Ídiche, quando o rabino entra em cena.

Digo sem óbices que gostaria de ter continuado com você dentro do sonho, e me permito escrever uma continuação, em que você tem duas pernas e veste uma túnica muito fina, quase transparente, que eu mesmo costurei; dançamos La Valse ao redor da vitrola; seu pau de vez em quando sai dos limites do tecido e aponta certeiro para mim. Estamos verdadeiramente dispostos ao sexo e ao trabalho, como antigamente. Nosso empreendimento terrível e maravilhoso: o poema épico, a biografia do Grande Buraco, a carta para a agitação dos povos, o manifesto de criação do Partido Anal Brasileiro — as grandes aventuras de nossos heróis Anitta e Amianto. Íamos tão bem! Mas entendo ser laborioso se manter agarrado às coisas, quando tudo é tão incerto e treme. Procuro entender seu desaparecimento — esse desastre. Pensei em continuar sem você, mas me pergunto como faria sozinho todas as densas e necessaríssimas leituras; como será possível prosseguir sem você chegar na voadora com trechos do Alcorão e do Sureq Galigo? Além do quê, eu colocaria farofa em tudo e perderíamos um algo solene conquistado.

Espero que quando eu voltar ao Brasil, com a receita em mãos, voltemos à labuta. Prometo não discutir mais se hexâmetro datílico é mesmo a melhor escolha para a métrica. Isso se você não tiver fugido para Yokohama com aquele ator ruim. Bem, mas o fato é que não sei mesmo quando vou voltar. A mulher estrábica usando vestido azul-da-prússia ainda não chegou com a maleta contendo uma maleta menor contendo uma caixinha de metal contendo um pequeno cofre que guarda consigo o papel em que está escrita a receita — em persa. Infelizmente, pois não aguento mais apontar onde fica a Victoria´s Secret. 

Foi surpreendente receber a mensagem, você não pode imaginar. Embora carregado da opacidade malandra típica de algumas escritas esotéricas, o e-mail foi muito claro e enfático acerca do sabor extraordinário do bolo. Assim: nababesco. Algo que nem a corte de Luís XVI desfrutou. Não acredito que ele vá me causar trinta e cinco orgasmos nem me rejuvenescer dez anos, como garantiram, mas haja curiosidade para essa mistura singular que inclui, entre outros ingredientes que por enquanto não me foram revelados, zimbro, canela, framboesa e líquens. O bolo vai salvar o Brasil — foi o que me disse madame Zaza. Seu preparo vai liberar grande energia capaz de expurgar todo o mal que se abate sobre nosso puído país. Mas para tanto, ele teria que ser feito durante a conjunção de Saturno e Júpiter em Aquário, em 21 de dezembro, no início do novo ciclo astrológico. Conversa fiada. Assim que eu chegar em casa vou fazer esse bolo e comê-lo até me fartar. E depois contar para minha mãe, o que é notavelmente importante, já que ela não acredita na minha capacidade de fazer bolos.

Madame Zaza disse que a mulher (talvez, afinal, ela mesma) aparecerá neste aeroporto entre julho e setembro com a receita. Não, não poderia ser enviada pela internet, pois os hackers estão de olho. Nações e máfias a cobiçam, e dizem que George Soros não paga menos que uma fortuna por ela. A sorte é que está um clima ameno em Praga. Tenho por vezes a companhia de uma chilena que mora aqui há dois anos. Ela ganha dinheiro fingindo-se de cigana e lendo mãos, tudo de mentira. Costumamos jogar cartas e falar mal dos Chicago Boys. Contei bastante para ela sobre o Brasil, e ela realmente achou notável a parte do Louro José. Tomei a liberdade de comentar sobre nosso poema épico: falei dos percursos da Tilápia Voadora, da Suprema Corte das Capivaras Douradas, de Brasília bombardeada por Maria Bethânia a plenos pulmões; tive que citar nosso Woyzeck que só se alimenta de batata frita (não disse a você, mas penso nele como uma espécie de incel); e também que lá pelo décimo canto ocorre um sexo tonitruante que lança seus leites ácidos sobre a cidade, pura destruição, uma cena que nós ainda deveríamos realmente sentar para escrever. Ela vai guardar segredo, juro. 

Também posso ter dito algo ao rabino Shmuel. Ele se interessou tanto que me contou a lenda do Golem de Praga, um gigante de terra que não comia, não cagava, não reclamava, só trabalhava. Conta-se que, no século XVI, o rabino Loew punha o papel que tem o nome de Deus e dá a vida na boca do gigante para que ele despertasse e realizasse diversas tarefas. O papel era retirado na véspera do shabat, deixando o gigante absolutamente inerte, e colocado novamente na segunda-feira. Certa vez, o rabino Loew esqueceu de retirar o papel, e o Golem passou um fim de semana animadíssimo devastando a cidade. Sinto vontade de errar um monte em Praga neste verão, mas preciso esperar o papel com a receita do bolo e tentar salvar o Brasil. Tenho o palpite de que tudo isso ficaria muito bom no poema.  

O rabino Shmuel e a chilena, me parece, possuem o espírito teso daqueles que têm muito para dizer e fazer enquanto esperam. Talvez eu seja como tal. Podemos explodir tudo a qualquer momento. Chamo isso de espera ativa? Podemos criar pequenos países aqui — e estas terras serão como um dia imaginado nas palavras. Uma carta na boca — todas as palavras são os nomes de Deus. Espero, escrevo. Querido, esta não é uma carta de veludo. Sinto que madame Zaza me deu um bolo. Sinto que você me deu um bolo. Amanhã o rabino Shmuel vem me acordar com bengaladas. 

          Um beijo, 

          U. 

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Imagem da capa
KESERÜ, Károly. Untitled (1706092) – Acrílico sobre madeira. 2017.

Dante, como o florentino, é poeta. 

com Ana Cristina Cesar, Cy Twombly, Elenita Braga, Gershom Scholem, Gertrude Stein, Joice Nunes, Jorge de Lima, Lygia Clark, Márcio Seligmann-Silva, Maurice Ravel, Michelle Sena, Paulo Montserrat, Peter Pál Pelbart, Tércia Montenegro & Weyes Blood.