coleção:
carta de pedro rena para mariana machado

Belo Horizonte, 22 de junho e 22 de agosto de 2020.

         Querida Mari, 

Ontem assisti com muita ternura ao filme Ângelo, que você fez com seu avô. Como você sabe, ele e minha avó eram amigos na juventude. Fiquei vendo o filme e imaginando eles juntos nas aulas de biologia, nas estufas estudando os insetos, escrevendo livros infantis. Você não acha que lembrar dos nossos avós que nos criaram — observando hoje o modo como eles habitam as imagens — é uma forma de pensar sobre toda a experiência e o amor que eles nos transmitem? Lembrar que eles habitam também em nós: para sempre, por inteiro.

Estava por aqui outro dia lendo sobre os “Retratos em movimento” no cinema (você conhece esse texto?), do Luiz Carlos Oliveira Jr., que fala sobre os filmes como testemunhos de um momento, de uma sucessão de pequenas vivências de uma pessoa num dado estágio da sua vida. Este tipo de filme que se constrói menos pela representação de episódios significativos (embora estes não necessariamente se achem excluídos da narrativa) do que pela observação atenta da forma como o sujeito fala, anda, respira, se veste, faz a barba, cantarola na banheira jogando água em sua cabeça com um pratinho azul, conversa com a neta, convive com as libélulas. Fico pensando que seu filme tem muito a ver com essa ideia do retrato: a atenção à expressão tão singular do seu avô, para além dos temas (não menos importantes) das conversas. 

Nesse retrato fílmico, você cria molduras para enquadrar seu avô, tanto no espaço — com as molduras que você cria com as portas, os corredores, o espelho, a banheira, com a própria casa —, quanto no tempo — nas conversas que vocês têm, no resgate de memórias pessoais, nas lembranças que os objetos guardam, no manuseio das fotografias em cena. Como escreve Luiz Oliveira Jr.: “O tempo de duração do retrato filmado, assim, funciona como sua segunda moldura, uma moldura temporal que complementa a moldura espacial do enquadramento.” Os quadros dentro do quadro que você compõe nos fazem pensar no gesto do fazer do filme enquanto construção da imagem, sublinhado através desses sobreenquadramentos.

No começo do filme, Ângelo entra em quadro e se coloca, apoiando nas portas, diante do cenário da mesa que vocês construíram para o filme. Penso em como ele se põe nessa posição, entre a câmera e a mesa, nessa passagem entre o antecampo (o ponto de vista da câmera, assim como o dos espectadores) e o campo (a mesa da coleção). Ele vê diretamente a mesa, enquanto nós vemos a porta o emoldurando. Ele se apoia nas bordas da imagem, posando de costas para a câmera, observando de frente o cenário que abriga a coleção, o espaço montando para a imaginação. 

Em um plano posterior, não por acaso, Ângelo reaparece novamente em cena emoldurado pelas formas da casa, por esses recortes do espaço que enfatizam os fragmentos do tempo dos encontros que vocês tiveram. Você compõe um quadro equilibrado, enquanto seu avô também se equilibra com a ajuda do corrimão e da bengala. O bastidor da cena se faz presente: Ângelo pergunta, “pode ir?”, e você grita, ao longe, “pode!”. Em campo, ele nos diz — como que já encenando e consciente da dramaturgia —, “oh, minha neta, netíssima, que bom que você veio!”, demonstrando, ao mesmo tempo, uma certa espontaneidade da alegria de cada novo encontro.

Depois de filmar as mãos de seu avô se apoiando em um corrimão, de filmar o detalhe de seus cabelos espetados, você o filma fazendo a barba. Fico pensando neste gesto proposto como encenação, que é ao mesmo tempo cotidiano e artificioso: como se ele preparasse a face para uma mudança de rosto, abrindo espaço para colocar uma dessas máscaras que vocês criam no filme. Uma espécie de artifício espontâneo. A câmera se desloca do rosto de seu avô para o espelho. Sutilmente, com esse movimento da câmera, a dimensão da construção da imagem se presentifica no plano. Ângelo se duplica, se multiplica. E você entra em quadro para lhe fazer companhia. Vocês coexistem neste reflexo, neste filme. Você aparece filmando, segurando a câmera. Lembro da cena anterior em que você conta da antiga câmera que ele te deu, em que ele te presenteou com a máquina com a qual fez imagens ao longo de toda a vida. E você, no filme — com uma outra câmera —, faz agora imagens dele, imagens de vocês. Essa câmera entre vocês, portanto, não me parece um instrumento invasivo, como algo que instaurasse uma tensão ou uma disputa na cena, mas como uma espécie de microscópio através do qual você o observa com atenção. Me parece que o que está em jogo aqui é mais uma cumplicidade, uma vontade de fazer juntos, um desejo de mergulhar nesse universo dos encontros e da ficção. A câmera como um instrumento que provoca e realiza mais um desses encontros — científico e poético — entre vocês. A imagem como mais um lugar em que vocês convivem, se exploram. 

O filme como “a brincadeira da estação”, sobre as variações do tempo e do espaço. Filmar como uma forma de “praticar essas pequenas mudanças de perspectivas”, como você nos diz, com tanta beleza. O filme como um lugar de revelação: você o descobre e também se descobre, como nesse momento em que vocês trocam suas perspectivas ao se verem no reflexo de um espelho.

Adoro a cena quando ele nos conta sobre o seu livro O velho da montanha, do sujeito da barba de dois quilômetros, e diz que “o cientista é escravo da verdade, ele é preso pela verdade. Eu queria fugir, eu queria criar o absurdo, e só o escritor pode criar o absurdo”. Penso nesse entrecruzamento da verdade e da imaginação, como se Ângelo fizesse ciência como quem escreve ficção e literatura como quem faz um experimento científico. Como se um campo discursivo transbordasse o outro. E no filme a água da banheira também transborda, fisicamente, excedendo os limites do enquadramento. Penso agora na figura de seu avô que transborda os limites rígidos do retrato. Um filme também sobre o mergulho — a imersão no mundo, na memória, na imagem. A água que excede a banheira e o quadro. A água que também materializa a potência da transformação, da adequação a diferentes espaços (a banheira, o rio) e formas (a ciência, a literatura). É nas águas da Serra do Cipó que Ângelo nos diz: “Serra do Cipó é como a mulher que a gente ama, a gente vive com ela a vida inteira, e quando pensa que a conhece, descobre mais um córrego”. Você não acha que o gesto de olhar as imagens de arquivo é uma forma de descobrir, com o passar do tempo, coisas novas? Tenho pensado na promessa de futuro que as imagens guardam, como nos diz a Diana Klinger, “não é só o presente que ilumina o passado: o passado também lança uma solicitação para o presente”. Algo nas imagens que nos atinge, se a oferecemos novos olhares e ouvidos, “descobrindo algo singular, algo antes desapercebido”, como você nos diz sobre a brincadeira inventada por seu avô. 

No filme vocês fazem um retrato posado de Ângelo na cadeira — a moldura das árvores ocupa um grande espaço ao seu redor, abrindo o plano para a natureza que habita a casa. Luiz Oliveira Jr. nos diz ainda sobre o retrato em movimento: “o que está em jogo, acima de tudo, é a captação do traço, da personalidade, da singularidade dos sujeitos enquadrados pela câmera, quase como se a filmagem fosse, em alguns momentos, o equivalente cinematográfico de uma sessão de pose.” Mais à frente, Ângelo segura um retrato seu quando jovem, e nos conta a piada surrealista: “Será que eu era novo e fiquei velho, ou era velho e fiquei novo? Rejuvenesci bastante, rejuvenesci bastante.” A cena é também um bastidor da filmagem, no momento em que você aparece no canto do quadro colocando o microfone no seu avô. Ângelo ensaia o que vai falar na cena: “Tenho que falar direitinho, tenho que filtrar as asneiras”. Você dá sua risada clássica, e bate palmas para sincronizar posteriormente o vídeo e o áudio. É significativo quando ele sobrepõe o retrato antigo fotografado ao seu rosto, ao retrato novo filmado, misturando e brincando com as temporalidades da imagem e as diferentes modalidades do retrato. Ângelo Novo, Ângelo Velho. 

Você se lembra quando fizemos juntos a disciplina sobre imagem com o César e ele leu conosco o poema “Coleção”, da Ana Martins Marques? Ela diz mais ou menos assim, se não me falha a memória: “Colecionamos objetos mas não o espaço entre os objetos. Fotos mas não o tempo entre as fotos. Libélulas mas não seu voo.” Fico me perguntando se no seu filme você não procura colecionar justamente o espaço entre os objetos e as memórias de seu avô; o tempo entre as fotos e o encontro de vocês no presente; o desenho do voo de seu avô no ar: os movimentos que ele traçou ao longo de suas incontáveis vidas.

Logo na primeira imagem do filme, vemos o voo de borboletas que cruzam, em câmera lenta, o quadro composto com nuvens, árvores, um canto da casa. Nesse espaço, Ângelo se propôs a tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos anos, povoou essa casa com bengalas, melancias, borboletas, lupas, microscópios, cocares, maracas, câmeras, puçás, cigarras, livros, discos, cobertores, folhas, plantas, libélulas. Quando já velhinho, Ângelo descobre que esse paciente labirinto de objetos traça a imagem de seu rosto.

Com sua câmera-puçá, Mari, você reúne uma coleção de imagens de seu avô sobre um outro espaço, uma outra mesa: a de montagem. Um filme sobre o encontro de um colecionador de libélulas com uma colecionadora de imagens (noto agora que seu braço entra em cena e pega o puçá de seu avô, trocando as perspectivas dos colecionadores; seu avô foi também um colecionador de imagens ao longo da vida). Libélulas e imagens — seres que voam livres por aí, pousando aqui e ali.

Ângelo nos conta de seu sonho com uma nova e maravilhosa libélula, que nunca encontrou no mundo real. Logo em seguida você nos conta que imaginou uma cena final para o filme e não a encontrou no mundo real. Penso nessa presença não menos real das coisas na imaginação. E na vida que segue preenchida por essas imagens oníricas, que não deixam de se materializar no filme, através da narração. A abstração da ficção e a contingência do mundo, que convivem em vários momentos do filme.

Um filme, enfim, sobre estar à vontade junto. Sobre estar à vontade com o mundo, com a natureza, com as coisas. Como seu avô demonstra uma paixão ao falar da sua vida, das suas múltiplas atividades, das suas inúmeras profissões, das suas viagens no espaço e no tempo. Acho que ele — assim como minha avó — é um desses seres que são de outro mundo. Um mundo maravilhoso dos insetos, das crianças, da literatura. Desses seres que encontram (ou inventam) um mundo dissonante, que escapa de alguma maneira da lógica do capitalismo, não é mesmo? Essa força de uma vivência na imaginação, na fantasia, na fábula-libélula. E com o que essa imaginação tem de mais potente — como forma de perceber e transformar o “mundo real” (como diria Jonas Mekas, “I never understood life around me, the real life, as they say, or the real people, I never understood them.”) Talvez eles não entendam o mundo real, mas com certeza experimentam múltiplos mundos com muita intensidade e beleza.

Penso que a vida nesse outro mundo-microscópico não deixa de ser uma afirmação deste mundo, deste, o nosso, pois todos esses outros mundos não deixam de estar neste mundo nosso, neste, mesmo que de forma imperceptível. Nossos avós são desses seres que precisam de lupas para se maravilharem com a estranha ordem geométrica das asas de uma libélula (essas pequenas criaturas que são de uma imensidão). Fico pensando nessa política do filme, nessa sua ética: um outro modo de viver, de experimentar, de pensar, de amar, de perceber, descobrir, ver com atenção. 

Ângelo simplesmente é. “One of those creatures who simply are”, como canta Arto Lindsay. Uma criatura entre outras. Que pode ela, senão, entre criaturas, amar? Amar: observar, colecionar, inventar, escrever, criar, ouvir, aprender, ensinar, compartilhar. Amar, essa palavra tão importante para seu avô, como ele nos diz no filme.

Um filme, enfim, sobre os olhos tranquilos. Sobre a magia do resgate dessas imagens que trazem “num átimo a presença” daqueles que amamos, como você nos conta com tanto amor.

        Um beijo grande,
        Pedro.

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Imagem da capa
MACHADO, Mariana. Frame do filme Ângelo. 2020.

Mariana Machado é multiartista e pesquisadora residente em Belo Horizonte. Seus trabalhos passam pelo cinema e audiovisual, como diretora, roteirista, e montadora, pela fotografia e performance. Possuindo também experiências de estudo e criação em dança, artes plásticas e cinema-educação. É formada em Comunicação Social com ênfase em cinema pela Universidade Federal de Minas Gerais, com parte dessa formação na Universidad Complutense de Madrid (Espanha).