nenhum negar:
carta de guilherme del debbio

BH, 17:23h, 27 de agosto de 2020.

Você acabou de sair. Pelos fundos. E deixou as chaves. Deixou também uma nota em que pedia desculpas por não ter trancado a porta. Pensei: talvez era para que ela ficasse aberta. Fui eu, então, a deixar. Assim: aberta. Voltei à mesa e resolvi escrever-te. Escrever você e a você. Uma carta sempre chega ao seu destinatário, dizem. E assim sigo. Procurando por quem devo escolher para que porte o destino da minha rosa. Gosto das brancas. Nunca vi o branco mais vivo e cheio de cor como numa rosa. Seu brilho é tão intenso que cega o próprio sol. Lembra-se de quando você me disse que eu era como o girassol? Que eu me abria e depois me fechava para depois me forçar novamente a abrir? Te respondi no mesmo instante: alguns me assopram e você é um deles.

Também me lembro de quando você se foi pela primeira vez. Meu chão se abriu. Não conseguia distinguir o branco do brilho, a noite da escuridão. Foram dias de reclusão. Não havia um sopro sequer que me fizesse querer se abrir. Até que, como num passe de mágica, flori. Você não havia voltado, mas criei a imagem de uma estrada reta, sem curvas, deserta, que me levava até você. Na verdade, era um percurso. Que preservava a ausência de um destino ou de um ponto de partida. Dirigi por horas a fio, musicado que estava, com um sorriso de soslaio.

Você voltou. No entanto parecia diferente. Aproximava-se mais sério do que de costume para me escutar. Falava menos, mas era intensamente mais presente. Me acompanhava nos meus passos mais imprecisos. Me sentia diferente também. Talvez por ter inventado uma nova forma de te observar. Seus olhos sorriam. Seu corpo vestia trajes simples e não havia uma gota de suor em sua testa. Estava sereno e sábio. Te acolhi imediatamente. Não me era estranho que sua estranheza se dispunha de uma lógica matemática. Mesmo com a minha paixão pelos números quando criança e adolescente, não consegui resolver a equação. Havia sempre uma variável que se deixava inócua, sem valor. “É aí que estou”, você me alertava com ternura. Da paixão pelos números, escolhi fazer da minha vida algo que me levasse à lógica da existência. Claro, continuei sem encontrar o valor da variável. Hoje sirvo de ponte para que cada um que me procura se interesse por sua própria variável sem valor. Que nela a resposta seja a própria resposta.

Há uma outra imagem da qual me recordo quando te escrevo: você, com dificuldades de respirar, me olhou nos olhos durante cinco eternos segundos como se quisesse me dizer algo. Em seguida, desfaleceu. Suas extremidades rapidamente se esfriaram. O médico me afastou de ti e desde então não mais conversamos. Até o momento em que se foi, depois de três meses assustado pela possibilidade de ser você o próximo adversário da morte no xadrez. Visitava-o constantemente. Aprendi a ler os seus lábios e escutar o seu silêncio. Essa cena e o seu olhar me marcaram. Já com a ausência de palavras, aprendi a lidar. Quem sabe foi isso que você quis me dizer?

Me recordo também de você, corpo quente, deixando que eu postasse meus dedos frios de vento sobre a sua pele. Ali eu me aquecia. Ah! Como eu amo o vento! O que ele carrega de território em território até que sua raiva se transforme num redemoinho gigante que levanta casas? Sempre achei que deveríamos amar o vento. O seu canto aparece quando toca os objetos. Ele, sim, sabe o que é dar vida aos objetos. Como Llansol. Ah! Llansol! Aprendi com ela: “O devir de cada um está no som de seu nome”. Você a conheceu comigo. Lembra?

Por fim, uma pequena anedota: às vezes me perguntava se você era homem ou mulher. Passei anos sem conseguir me certificar de seu sexo. Não de seu gênero. De seu sexo. Gênero é coisa antiga, já entendemos isso. E hoje, depois de ver você sair pelos fundos, não mais me afligi. Resolvi contentar-me com você sem nome e sem sexo. Será que pelo fato de não te pronunciar eu nunca pude localizar a sua presença? Llansol diria que sim. Eu cá fico na dúvida. Na certeza da dúvida. O que me conforta. Acredita?

É isso, acho.

Me bipe caso eu esqueça a porta trancada.

Ficarei atento. Prometo.

Gui

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Imagem da capa
SORENSEN, Glenn. Sunset. 2014-15. Disponível em: https://www.pinterest.de/pin/413486809534045328/

Guilherme Del Debbio é psicólogo clínico, psicanalista e amante das letras.