combustível:
carta de benedito ferreira para thálita motta

Itapuranga, 29 de agosto de 2020.

          Th,

Um homem está sentado num banco de madeira em cuja superfície morta impera a obtusidade do traço de seu rosto. Veio, mas já foi embora. Escuto ele dizer isso pela quinta vez na beira de uma estrada enquanto peço o jantar. Imito a voz de Tadeusz Kantor para que uma cadeira seja iluminada. Procuro o limite do quadro. Finjo que ele já foi embora, que estou sozinho na casa em que nasci. Esta é a primeira vez em mais de trinta anos que isso ocorre. Fecho os olhos para alcançar a volumetria do espaço antes da reforma. Faço de tudo para resguardar o movimento do homem no enquadramento, mas ele alcança a escada para poder fazer alguma coisa na caixa d’água. Sinaliza a outra pessoa encoberta pelo muro que está diante de um problema. Escuto alguém que parece ser seu filho contar de uma vez que dois alqueires inteiros de terra foram queimados para a plantação de um novo tipo de soja. Faço promessa de nunca mais comer carne. Ao fazê-lo, estou visivelmente encobrindo trechos desses arquivos do pensamento. Presumo de um jeito meio tolo que essa tática vai privá-lo de um baita susto, afinal ele não pode escorregar do último degrau.

Na fazenda há um riacho com a água parada. É impossível desvencilhar-me dessa corruptela, exceto quando também repito que ele veio, mas já foi embora. No entanto, ele vem se despedir outra vez. Aproxima-se, titubeia, apoia a decisão que pesa cerca de cem quilos no canto do sofá coberto por uma manta verde. Sua decisão daltônica vibra na cadência entre um punhado de cores não complementares. Desabrocho a chorar. Sinalizo que ele não precisa pedir desculpa, que o corredor está logo ali. Esta é minha oportunidade de titubear agarrado ao batente do portal. Percorro a cozinha, tropeço no cachorro favorito de meu pai, desafio o limite dos objetos do alpendre. Escuto ele dizer baixinho que somos pontapés de nós mesmos.

Eu o chamo de Nome Próprio. Dar-te-ei um nome vitorioso, aquele que é seu porque é seu. Ao nomeá-lo, ele deixa de ser, e a imagem ganha tônus: ela pede para ser encontrada. Fica mais fácil subir a dois na caixa d’água.

Sou surpreendido com a extinção da vida humana. Uma camada fóssil recobre minha mão direita enquanto um gavião belisca o que sobrou da outra. O vizinho da voz bonita e especialista em algum jogo de cartas faz outra festa e não vou ligar para a polícia.

Peço que você me espere na Av. Álvares Cabral, 387, que eu estou chegando para o carnaval. Dizem que o de Belo Horizonte é coisa certa.

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Imagem da capa
FERREIRA, Benedito. Combustível. 2020.

Benedito Ferreira é artista visual.

Thálita Motta é geminiana com vênus em câncer que se dedica ao campo do teatro como pesquisadora, diretora criativa e pau-pra-toda-obra na direção de arte. Vem se aventurando de mansinho como dramaturga desde os sete anos de idade. É doutora em artes pela EBA/UFMG e professora no Cefart/Palácio das Artes. Colabora em vários coletivos, dentre eles, o Coletivo Transborda e o Mulheres Encenadoras, em Belo Horizonte.