geografia epistolar
O projeto Geografia epistolar consiste no envio de cartas poéticas para pessoas de diversos lugares, buscando dialogar com elas sobre suas práticas culturais e artísticas e investigando a relação delas e de seus fazeres com o atual estado de coisas do mundo: tensões políticas e estéticas contemporâneas; o impacto do coronavírus na vida e nas relações humanas; o mundo que temos e os mundos por vir. O Geografia epistolar foi idealizado e é organizado por Pedro Rena e Urik Paiva.
Este projeto de troca de cartas foi produzido por meio do Programa de Fomento Cultural – Bolsa de Fomento à Criação / Estudante UFMG.
realização:
Nem um conflito nuclear, nem uma revolta da inteligência artificial, ou mesmo uma invasão extraterrestre — o mundo foi rendido por um vírus. Pensar nesses seres microscópicos aponta que há muitos mundos convivendo neste mesmo planeta, incluindo o desses inimigos dúbios e poderosos. Enquanto a ciência tenta combater com seus meios o novo coronavírus, vemos milhões de doentes e milhares de mortos, cidades paradas, vidas aquarteladas. Alguns filósofos se prestam a exercitar o pensamento para investigar este acontecimento de escala global. Com essa companhia, esboçamos a pergunta: como estabelecer mundos possíveis a partir deste — paralisado, amedrontado? Pois se há muitos mundos dentro deste, então podemos nos permitir ainda imaginar outros, inventá-los: eis um gesto da arte e da política desde sempre; agora, no meio de uma crise apocalíptica, ele parece fundamental.
Entre as operações de pensamento de grandes nomes da filosofia contemporânea sobre a pandemia, destacamos duas. A primeira é de autoria da filósofa francesa Catherine Malabou. Em seu texto “De Quarentena à Quarentena: Rousseau, Robinson Crusoé, e ‘Eu’” (trad. João Pedro Garcez), ela diz, a partir de uma experiência de Rousseau, “que a quarentena só é tolerável se você colocá-la em quarentena — se você quarentenar dentro dela e a partir dela ao mesmo tempo”. Ela aponta a necessidade de, durante a reclusão, estar consigo mesma, se retirar para dentro de si. Em vez de driblar a solidão, encontrar-se com a solidão. Segundo a filósofa, certo descanso da “socialidade” seria, às vezes, “o único acesso à alteridade, uma maneira de se sentir próximo de todas as pessoas isoladas na Terra”. Na quarentena, ela se põe a pensar, a escrever, como um gesto de comunicação consigo e com o mundo.
O segundo texto é do filósofo espanhol Paul B. Preciado. Publicado no dia 11 de março deste ano, “A conspiração dos perdedores” (trad. Luana Fortes) foi escrito após seu autor ter se curado da Covid-19. Ele conta que a primeira coisa que fez “depois de ter estado doente com o vírus durante uma semana tão vasta e estranha como um novo continente” foi se perguntar “sob que condições e de que forma valeria a pena viver a vida”. Em seguida, escreveu uma carta de amor.
Este gesto, o da escrita de uma carta, é nosso ponto de partida. Sabemos que a escrita não existe apenas para representar, mas para inventar, estabelecer novas relações, ordenar ou desornar as coisas. A escrita cria outros, mesmo quando íntima. No caso da carta, ela é a própria saída da linguagem: radicalmente uma busca e depois uma acoplagem. Entre sua origem e sua chegada, o meio não é saltado, mas preenchido. Eis o tecido de que queremos tratar aqui: o tecido do texto. Como nos diz Roland Barthes, no Prazer do Texto:
Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelançamento perpétuo; perdido nesse tecido — nessa textura — o sujeito desfaz-se, como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas secreções construtivas da sua teia. Se gostássemos de neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (Hypos é o tecido e a teia de aranha).
Assim, nosso projeto consiste na composição de um tecido textual que une pessoas diversas, com seus múltiplos saberes e fazeres, para falar de si, do mundo que está aí, do mundo que queremos. Um vai-e-vem amistoso entre a literatura e o ensaio: cartas poéticas para um tempo ríspido. A carta enquanto gênero aponta para um diálogo propositado; um jogo de linguagem alicerçado numa enunciação que sabe do seu alvo ou o imagina com inteligência. A carta é um campo aberto onde pode habitar o poético, o humorístico, a meditação, a pergunta, a narrativa, a confissão: um gênero que pode conter gêneros. Escolhemos a carta porque ela é viajante, o texto que nasce para a partida, o exílio. Se permanecemos em quarentena, que ao menos nossas palavras possam sair de casa, sem máscaras — ou com as máscaras que desejarmos.
Assim, escreveremos para destinatários diversos: artistas, pesquisadores, professores, amigos, amores; pessoas comuns, abertas ou indecifráveis, cheias do que dizer; pessoas de Belo Horizonte e de outras cidades e países. Uma escrita que vai para onde nem estávamos pensando em ir. Pontos no mapa do mundo que de repente se ligam. Vamos publicar as cartas e suas respectivas respostas, além de materiais relacionados aos textos, a partir daí inventando uma nova geografia, estabelecida a partir dos caminhos da escrita, uma geografia epistolar que é drible da nossa condição temporária de imobilidade. A geografia epistolar é o mapa de nossas cartas, que é também o mapa desse lugar novo estabelecido por meio dessas remessas. As palavras “carta” e “mapa” já possuem associações, nos conta Fred Benevides em texto para o catálogo da mostra de filmes Filmes-carta: por uma estética do encontro, ocorrida no Rio de Janeiro em 2013. Ele diz:
Carta e mapa possuem uma ancestralidade comum. Ambos os nomes derivam do tipo de material que serviu de primeiro suporte ao que depois viria a tornar-se objetos autônomos: carta (‘charta’, no latim) vem de folha de papiro; mapa (também do latim, ‘mappa’) de toalha de mesa, material onde viajantes (comerciantes, navegadores) rabiscavam rotas e caminhos durante encontros em espaços públicos para negociar expedições.
Ele continua:
Cartas enviadas por correspondência são mapas em movimento, misturando coordenadas objetivas e subjetivas, inventários de um tanto de elementos dispersos pelo planeta que em algum cruzaram o raio de nossa percepção e invenção. Talvez mapas da interioridade.
Nosso objetivo é cruzar espacialidades, temporalidades e elementos, promover trânsitos, exercer uma virtualidade que seja ação e presença nos velhos e novos, grandes e pequenos mundos, fortalecendo um sentido de comunidade, justamente agora, quando mais é preciso afirmá-lo. A escrita dessas cartas é, portanto, um duplo gesto: estar consigo mesmo de forma distinta de uma mera solidão, como em Malabou, e partir para o encontro dos outros, fazendo do tecido textual o tecido de um comum. Começando por uma troca entre Pedro Rena e Urik Paiva, o projeto está dentro do arcabouço maior do projeto surrealpolitik, um empreendimento literário — e também uma festa. Aliás, escrever, enviar, receber talvez sejam formas de dança, formas de vida, de movimento, de alegria.
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Essa produção tem classificação indicativa de 14 anos.