turbulências:
carta-sonho de rita pestana para augusto barros

Lisboa, 3 de julho de 2020.

Nem tudo começa com um sonho.
Esta carta não começa com um sonho.
Termina com um.

Você, melhor que ninguém, sabe que eu sonho muito durante a noite. Sabe também que é comum lembrar-me dos sonhos quando acordo. Nos últimos meses — não sei se pelo vazio — os sonhos têm encontrado um espaço e um tempo maiores para me habitar. Parece que o meu corpo se transformou numa espécie de sala de cinema do meu inconsciente. 

Sempre te falei muito da imaginação como força política.
E dói (dói muito) quando nos sentimos cansados, exaustos, para imaginar.
Ultimamente tenho sentido que a nossa capacidade de criar está a esgotar-se pouco a pouco. E somos tão jovens. Não é possível!

Talvez nos andem a fazer sentir que “não há saída” (outra vez?). Olhar as notícias diariamente é a certeza de que este monstro (e falo de todos os monstros — em sentido figurado e não só) são maiores e mais duradouros do que alguma vez acreditamos.

E eu tenho medo que a dor se torne um hábito.
Tenho medo de deixar de sentir. E o perigo da falta de sintomas é eu poder já ter morrido (por exemplo, enquanto te escrevo esta carta) sem saber. Sem aviso prévio. E os avisos prévios são importantes.

Então, serenamente e quase sem sintomas, sonhei o que agora te conto.

Você não conhece este shopping. Ele fica aqui em Portugal e se chama Centro Comercial Colombo. Penso que seja o maior de Portugal e sim, o seu nome é em homenagem a Cristovão Colombo. E, se o sonho começa neste lugar, ele pode tender para o pesadelo (deixo a seu critério). No interior deste Centro Comercial existe um hipermercado chamado Continente (juro que todos estes nomes são reais). Eu estou dentro desse grande hipermercado sozinha, sem nada nas mãos e sem carteira também. O meu corpo está perto das mais de 40 caixas de pagamento onde passam, pelo laser vermelho, os muitos produtos essenciais à população. De repente, num gesto bruto e rápido, as luzes do tecto do Continente começam a cair sobre os atendentes dos caixas e as primeiras pessoas que fazem pagamento. Curtos-circuitos mostram-se inevitáveis, o que dá lugar a explosões que rapidamente criam uma barreira de fogo. Apesar do cenário trágico e dos gritos histéricos eu aparento uma calma surpreendente. Tento racionalizar uma forma de sair daquele lugar mas percebo que não será mais possível: existe agora um muro de corpos, fumo e fogo que não me oferece saída do Continente. Resignada, viro-me no sentido contrário a essa barreira e caminho devagar contrabalançando a velocidade de todas as pessoas que correm ao meu redor. Penso que será melhor ligar à minha mãe e dar-lhe o pré-aviso da minha morte — afinal, não há saída e os avisos prévios têm as suas vantagens. O mais curioso deste sonho é que, vinda do nada, a Dilma (sim, a Dilma!) está agora ao meu lado, vestida de vermelho (e talvez por isso esta carta só possa ser para você). Ela olha-me e diz-me, muito certa, “vem comigo, há um portão no fundo deste corredor que vai direto para o aeroporto”. Juntam-se a nós três pessoas, que ela me apresenta como seus assessores. Apresso o passo e juntos chegamos a um aeroporto semelhante ao do filme Casablanca. Aliviada, entro finalmente no avião com a Dilma, os seus assessores e muitas outras pessoas que conseguiram chegar ali. O avião está cheio. Somos muitos (e é importante nunca nos esquecermos que somos muitos!). Levantamos voo e começo a sentir um alívio de ter conseguido sair daquele caos. No entanto, uma vez o avião em piloto automático, começa a maior turbulência aérea que senti. Percebo que o meu corpo está de pé e que o meu equilíbrio é muito frágil. Não tenho onde me apoiar a não ser nas pessoas que estão à minha volta. Um medo enorme percorre-me a alma e olho para a Dilma aterrorizada. Ela sorri-me e, muito calmamente, diz-me: “há saída, mas ela é turbulenta”. 

Não sei se os sonhos são formas de imaginação. 
Não sei se a dor vai ficar para sempre e virar hábito.
Sei que já temos disponíveis os meios para a criação de um mundo mais justo.
E… agora sei também: há uma saída. Mesmo que turbulenta.

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Baixe a carta aqui.

Imagem da capa

CURTIZ, Michael. Frame de Casablanca. 1942.

Rita Pestana é formada em Cinema pela Escola de Cinema de Lisboa. Vive entre o Brasil e Portugal há quase dez anos. Atua principalmente como montadora de filmes de Cinema e também ministra oficinas em audiovisual.

Augusto Barros é cineasta. Formado em Comunicação Social.