enunciados, chuvas:
carta de urik paiva para breno henrique

Belo Horizonte, 2 de julho de 2020.

         Querido Breno, 

Em novembro de 2015, você publicou em seu perfil no Instagram uma foto em que está à frente de uma projeção. Na tela branca se lê: “a cada passo dado o mundo está mudado”. Em setembro de 2017, a foto postada é de uma placa próxima ao edifício Niemeyer que diz: VOCÊ PODE ESCOLHER. Em março do ano seguinte, a imagem de um picho, num muro qualquer: + AMOR + NEGROS. Andamos no tempo, e eis uma foto da vidraça do Palácio dos Artes, plotada com uma frase de Teresinha Soares: ARDIA DE AMOR E SE QUEIMAVA. Em janeiro do ano passado, você postou o recorte da capa de um jornal do Movimento Negro Unificado de 1991, em que um casal se beija, com a legenda “Reaja à violência racial/beije a sua preta em praça pública”, versos do poeta Lande Onawale. Numa outra postagem, de fevereiro de 2019, você segura um pequeno cartaz com os dizeres “Precisava matar?”. Na foto seguinte da mesma publicação, você e outras pessoas estão deitadas no chão do supermercado Extra. Um pouco acima, há a foto de uma tatuagem no seu braço, a reprodução exata de um desenho que você fez quando criança: nuvens, estrelas e um TE AMO MAMÃE. Uma das postagens de maio é de uma faixa pendurada nas dependências da UFMG em que está dito: NEM CORTES À EDUCAÇÃO NEM REFORMA DA PREVIDÊNCIA. EM DEFESA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DA FILOSOFIA

Então, em agosto de 2019, uma postagem com duas fotos, em que você e sua mãe seguram uma faixa pintada com os dizeres: O FUTURO NÃO SERÁ COMO O PASSADO. Os corpos de vocês, posicionados logo à frente de um muro com tijolos aparentes, estão parcialmente iluminados pela luz do sol do fim da tarde. Uma faixa semelhante está em outro conjunto de imagens, empunhada por você em várias poses; diz: VOLTAREI A SER PARTE DE TUDO. Adiante no tempo, uma nova faixa: COMO SE O CÉU FOSSE OCEANO, segurada por você e sua mãe. Em janeiro deste ano: ASSIM QUE ABRO MEUS OLHOS. Há a foto de sua mão, carimbada com os dizeres: RESTA POUCO TEMPO PRA VOCÊ ME AMAR. Outra foto, outro carimbo: TE BEIJAR ATÉ SENTIR GOSTO DE SOL. Um vídeo em que você segura uma faixa que tremula: RESPIRAR EM CIMA DA TERRA. Um novo carimbo: NAQUELE DIA O MUNDO QUASE ACABOU. Um novo carimbo: ENQUANTO TUDO PERMANECE. Uma nova faixa: HABITAR O PRESENTE SEM MEDO! Sua mãe segura: AGIR NO AGORA. Você segura: FUTUROS

Penso numa montagem possível para todos os enunciados que você construiu e dispôs em faixas e carimbos; existem talvez como um poema em curso numa superfície que se move com o vento. Pesquei do seu Instagram esses primeiros dizeres, que não foi você quem elaborou, porque eles claramente demonstram seu gosto por construções frasais fixas no espaço. Essa atenção alinhava para o gesto posterior? Lembro do Richard Serra falando de como a visão dos navios chegando ao porto onde seu pai trabalhava impactou sua noção de escala. Gosto de pensar em como se dão essas apreensões formais, nas aberturas solitárias da infância ou no conjunto traumático da vida adulta. Meu romance favorito, Retrato do Artista Quando Jovem, do James Joyce, é repleto delas. Tenho alguma noção de onde capto minhas formas para o trabalho com a palavra, mas não quero falar delas hoje; gostaria é de saber das suas. Volto de repente ao nosso almoço, no ano passado, no Mineirinho. Você me contava do diário da sua mãe. No seu Instagram há uma foto da entrada do dia 23 de março de 1992. Diz:

Estou no trabalho, hoje é um dia difícil de trabalhar, estar com você sábado e domingo é lindo. E geralmente 2ª feira é o dia que me sinto mais cansada, trabalho sábado e domingo, bem mais que no correr da semana. E faço o impossível para lhe dar bastante atenção.

Eu estava numa ressaca monumental, mas lembro que fiquei exaltado com a descrição de sua relação com ela: como são vocês dois para o que der e vier. Fiquei curioso por essa escrita. O diário é uma escrita íntima, mas ela parece escrever para você e com a consciência da sua leitura. Como se fosse uma carta. Uma escrita de dois gumes? Se o contato com o diário da sua mãe aconteceu há muito tempo, ele teria lhe conduzido para a apreensão formal da lógica do enunciado? É interessante pensar na observação dessas frases na infância e no seu consequente trabalho com elas. Frases nadando no oceanário da mente, lapidando-se, transformando-se, à espera da sua pescaria? 

FIGURA 1: HENRIQUE, Breno. Habitar o presente sem medo. 

Retomo Barthes falando de Flaubert, de seu trabalho exaustivo com o estilo. É conhecido que Flaubert operava suas frases com obsessão estilística, esburacando, extirpando, trinchando palavras até ficar exausto, cair doente na cama e depois escrever cartas se lamentando. Eu deixaria Flaubert com inveja se dissesse a ele que tenho trabalhado numa mesma frase há no mínimo três anos, sendo verdadeiramente angustiante que a tarefa pareça estar longe de uma conclusão. Vendo você estirar suas frases no espaço em tamanho bem superior ao de uma linha de caderno, excita-me pensar numa agonia pública do meu enunciado: se eu tivesse dinheiro mandaria fazer faixas com todas as versões dessa mesma frase inquieta e inacabada, penduradas em cordões nas margens da avenida dos Andradas. Um experimento público de corpo frasal em sofrimento, para o gozo transeunte da cidade.

Mas as frases às vezes nos abalroam feitas numa esquina da vida, completíssimas, fechadas. Ou prontas em sua incompletude ou vagueza. Algumas de suas frases contêm uma curiosa inexatidão, ou não temos como lhes preencher o derredor. É como se você as retirasse de uma narrativa maior, nos colocando não a missão de decifrar a que universos pertenceriam, mas de fruir sua beleza molecular. Por isso, você as amplia, para que sejam corpo inteiro; por sinal, a própria envergadura do seu corpo de braços abertos. Pode ser natural, e até romântico, pensar que esse gesto se refere a um abraço: frases para o encontro sensível com um outro. Mas tenhamos outras alusões como trunfos. Como o que ocorre com algumas espécies animais, essa abertura serviria ao voo ou para a defesa contra predadores. Alguns bichos possuem de fato desenhos assustadores no próprio corpo, como forma de proteção. Não estranharia se isso se referisse ao seu caso: você empunha frases para espantar os inimigos. Faz ainda mais sentido, não pelo tamanho, mas pelo contato bem direto com a pele, se falamos dos carimbos. Penso num corpo todo carimbado com a frase HABITAR O PRESENTE SEM MEDO

E sobre o seu filme, Como se o céu fosse o oceano, enquanto grafia com imagens, seria possível projetá-lo num tecido que você segurasse com os braços abertos? 

Você mexe com as palavras de modo espiritual, quase litúrgico. Sinto nelas uma beleza, ao mesmo tempo solene e poética, que é como ficar parado sentindo o vento e sendo cortado pela luz do sol no fim da tarde. Ou molhando na chuva. Há uma bela postagem, com fotos e vídeos, em que você fala da chuva e da sua avó. Dois vídeos, com as palavras “chover” e “molhar” em papeizinhos impressos na sua mão, sendo molhados pela água da chuva. Uma foto da foto de sua avó. Uma faixa com a frase MINHA AVÓ SE CHAMAVA ANTÔNIA na foto seguinte. Por último, um vídeo em que você segura essa faixa. Na legenda, você escreve que sua avó dissera para sua mãe, que por sua vez lhe transmitiu: “pega a água da chuva e guarda pra usar depois”. Nesse texto você fala de morte, transmissão, ciclos. O ciclo da água é o ciclo da vida, entre acúmulos, reposições, fluências, repetições. Mas os ciclos possuem distinções, como quando falamos do ciclo da vida de um homem negro no Brasil. Se você diz “tenho pensado muito nos mortos, me sinto próximo de alguns deles”, é sua também a construção “eu me recuso, forjo outras estratégias para me desviar da morte, da urgência de morte que me querem que me solicitam, da urgência de morte que me demandam”. 

Escrever é viver. Esse movimento de vida é o que me conduziu até o seu trabalho. Tenho observado devagar a sua escrita, em silêncio. Gosto de quando vejo você estender mais um enunciado. Essas frases que são defesas, recusas ou preenchimentos vêm do seu trabalho com a água da chuva, com tudo que você acumulou ao longo de seus trinta e poucos anos. Enfim, suas frases são formas muito intensas e bonitas de “agir no agora”. Estendê-las é gesto forte, trabalho laminar com essa grande chuva que é a vida. Lá no Ceará, de onde eu venho, temos costume de olhar para o céu nublado e dizer: está bonito pra chover. Pois se trata de uma terra seca, para a qual a chuva significa bênção e fartura. A chuva é uma enunciação. E uma anunciação. Suas pequenas palavras me molham. Você está bonito para chover, Breno. 

         Um abraço para o neto da Antônia e filho da Márcia,

         Urik.

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Baixe a carta aqui.

Imagem da capa

HENRIQUE, Breno. “Habitar o presente sem medo”. 1° de março de 2020. https://www.instagram.com/p/B9MfJqtpvx4/

Breno Henrique é mestrando em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Cinema e Audiovisual pelo Centro Universitário UNA. Realizador, curador e pesquisador de cinema. Foi professor no curso de Direção de arte e Cenografia no Núcleo de Produção Digital da Prefeitura de Belo Horizonte. Diretor do curta metragem “Como se o céu fosse Oceano” vencedor do prêmio de melhor filme na Mostra Competitiva Minas do 21° FestcurtasBH – Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte.