repeat:
carta-playlist de pedro rena para gabriela abdalla

Belo Horizonte, 6 de julho de 2020.

         Querida Gaby,

Talvez não tenhamos tantas fotografias de momentos que vivemos juntos, mas temos, com certeza, todo um álbum de músicas. Uma coleção de lembranças que, pelo menos para mim, se materializam quando escuto certas canções. 

Foram tantas as músicas que você me apresentou, músicas que gosto tanto e carrego comigo todos os dias, como você bem sabe. Quando você as colocava para tocar e dizia “Pedro, você tem que ouvir isso!”, todas eram, por sua vez, disparadas por memórias suas, que te lembravam encontros de outras épocas, com antigos amigos. Como em um poema da Ana Martins Marques, em que ela diz: “É bom lembrar lembranças dos outros como quem se oferece para carregar as compras de supermercado de outra pessoa”. 

Quando escutamos músicas juntos, você me faz lembrar, sempre tão encantada, as suas lembranças. E — nesse mesmo gesto — criamos memórias nossas, memórias desses belos momentos que compartilhamos ouvindo música e conversando. Você é mesmo uma narradora, dessas que transmitem magicamente experiências contando um caso, nos transportando, como se costuma dizer, para outros tempos e lugares. Você sempre se pergunta, desconfiada: “como transmitir — na escrita — os gestos, as risadas, as entonações da fala?” Também não sei. Mas tento agora, de todo jeito, traçar um mapa de algumas de nossas lembranças neste texto, nesta lista de músicas que você me apresentou, e que agora te apresento em retorno, ordenadas numa playlist. Músicas que são a sua cara; e a minha também, that’s us. Te devolvo estas músicas agora, portanto, as reunindo como numa sacola de compras do Carrefour

Um dia, com um copo de café ou de cerveja na mão, você me contou um de seus sonhos, e disse que o mais importante e bonito, do mundo, é a imaginação (é isto: quando você conta um caso, você imagina, sonha acordada, e nos convida a entrar nesse seu universo onírico-musical). Não por acaso, as primeiras músicas que coleciono aqui são para escutar como se estivéssemos dormindo: Cup of dreams e Dream baby dream. Adoro os convites inusitados da primeira: “vamos dançar numa rua solitária, vamos nos banhar num copo de sonhos”. A outra, imagina, com simplicidade: “eu só quero ver seu sorriso, forever and ever”.

Você me apresentou duas das músicas do Bowie que eu mais gosto, It’s no game (pt. 1) e, uma das mais lindas, World on a wing, em que ele canta (reparo agora na letra e te dirijo essas palavras): “You walked into my life out of my dreams.”

Um dia — um dia de semana —, fomos no Maletta, eu, você e a Susana, quando morávamos nós três, você se lembra? (Home, is where I want to be, but I guess I’m already there; “entre os heads [radio e portis], eu fico com o talking”, como você costuma brincar). Acho que naquela noite não bebemos muito; uma ou duas cervejas. Mas na volta, como que fictícia e completamente bêbados, chegamos em casa, apagamos as luzes (apenas luzinhas vermelhas se acendiam na sala ao lado), e você colocou, na sequência, Up with people e Mannequin. Dançamos, dançamos, dançamos. Por quinze minutos. Como loucos. Fizemos um pequeno-mosh no escritório. Você se lembra? Tell me, why don’t you tell me!

Um dia, quando preparávamos uma playlist para uma festa de aniversário, você me disse: “Pedro, você tem que ouvir isso. Isso é maravilhoso!”, e colocou, hipnotizada, Another green world do Brian Eno para tocar. “Todas as nuvens se tornam palavras, todas as palavras flutuam na sequência, ninguém sabe o que elas significam,” ele canta, com todo aquele espanto. 

Um dia, você colocou pra tocar Body language, do Queen, e disse: “eis uma música perfeita para um desfile de moda.”

Um dia, você me contou (esse caso você certamente me contou mais de uma vez!) que chegou numa festa, na casa de um amigo, e estava tocando uma música do Arthur Russell. Você ainda não o conhecia. Você passava pelas pessoas, e — em vez de cumprimentá-las —, apenas repetia, espantada, “que música é essa meu deus!, que música é essa!”. Flutuando na sequência dos casos (na frequência dos acasos), você sempre conta da festa em que colocou Arm around you para tocar, e todo mundo começou — numa súbita sintonia — a dançar. Essa música que diz sobre esse simples (mas tão importante e desejado) gesto que nos foi vetado nesses tempos: abraçar. Lembro também que nos agradecimentos da minha monografia dediquei a você uma outra música do Arthur Russell que escutamos muito juntos (ah!, quão lindo é este título): That’s us, wild combination.

Um dia, você me contou quando ouviu a música do Aphex Twin pela primeira vez, “aquela na sequência de Alberto Balsam”, que você deu um salto de susto quando, do nada, uma porta do carro se bate a toda altura na música. Você deve ter me dito: “Pedro, você tem que ouvir isso!”. 

Um dia, você me contou sobre a época em que discotecava música eletrônica, colocava pra tocar Oscillations e Headhunters. Deve ter sido na provável passagem de uma dor de cabeça duradoura para um repentino devaneio sonoro. Um desses momentos em que você se inspirava rapidamente, e uma música irrompia, no meio da rotina de trabalho. Você sempre me dá seu clássico conselho para as discotecagens: “as músicas não podem combinar! Tem que ser uma diferente da outra!”. Wild combination.

Um dia, fui eu que te apresentei uma música: The governor, do Nicolas Jaar. Colocamos as duas cadeiras da sala de frente pro som, como numa audição, você se lembra? O volume no máximo. Nós dois parados, olhando pra parede. Você deve ter acendido um cigarro. Comentou: “temos que tocar isso numa festa.” E descobríamos juntos, no dia-a-dia, os lançamentos da época: Julia Holter, Kendrick Lamar.

Um dia, você me contou quando ficava no escritório, ouvindo no fone e cantando em voz alta, repetidamente, a música do Paul McCartney, “coming up, coming up”. Até que alguém chegou pra você e disse: “que isso, Gaby, porque você fica falando caminhar, caminhar?”. 

Nessa quarentena, você me ligou duas vezes para falar sobre duas músicas que te emocionam tanto (e você falava mesmo muito emocionada): Berlin, do Lou Reed, e, hoje mesmo, Invenzione per John, do Ennio Morricone, “chom chom chom”. Aprendo tanto com você. Me inspiro diariamente. É lindo como você tem tantas histórias, entrelaçadas com tantas músicas, e como você compartilha tudo isso comigo. Obrigado.

Ah, são tantos dias, tantas músicas, tantas histórias. Não cabem numa lista. Mas, de toda forma, reúno algumas músicas e casos aqui, como numa homenagem. 

Como diz o Victor Heringer, temos “vontade de dar conta de tudo, de ordenar um universo por essência caótico. O avesso da lista, portanto, é sempre aquilo que lhe escapa, o que foge e sempre fugirá do conjunto. Por isso seguimos compondo listas. Pelo desejo de viver. Por isso nos fascinam tanto”. Eu diria também: seguimos compondo listas pelo desejo de reviver certos momentos: nas narrações e nas canções. Músicas para celebrar uma amizade, esse nosso encontro de vida. Eis uma lista para você se lembrar mais uma vez — pois já está cansada de saber — o quanto você é importante na minha vida. Uma ideia para você colocar no repeat

Um grande abraço (por aqui, pelo menos, ainda podemos, )!

Pedro.

Ps.: cha-cha-cha-chaka-chakan, wanna hug you

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Baixe o pdf da carta aqui.

Imagem da capa

RENA, Pedro. This must be the place. 2016.

Gabriela Abdalla é designer gráfica e DJ aposentada.